quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Crônica: Lembranças dos tempos de escola


Escola SESI Cambona, c. 2010.

João Medeiros

É impressionante a marca que algumas pessoas ou acontecimentos podem deixar em nossas vidas, a ponto de haver memórias detalhadas ainda que não se pense em tais coisas por décadas.

Apesar de tudo isso parecer hoje tão distante neste novo mundo tecnosocial em que vivemos, com seu turbilhão de informações, entre 2010 e 2012, quando estudava no SESI da Cambona, fui aluno de um professor de matemática de nome Abelardo. Baixinho e gordinho, era notável pelo seu humor e mais ainda por seu temperamento, curto como seus aproximados 1,65m de altura; temperamento que nos divertia pela famosa resposta exclamativa quase como que um bordão: "meu querido!". Ao pensar nisso, consigo até mesmo ouvir sua voz e a entonação de bronca que tinha para com os alunos, que às vezes faziam algo de errado propositalmente somente para ouvi-lo frasear seu icônico chavão.

Em 2010, no 6° ano, fui reprovado na segunda prova bimestral do ano: tirei 6.25, mas precisava de uma nota mínima 7 para a aprovação. Foi a minha primeira vez numa recuperação escolar – mas infelizmente não foi a última. Ainda me recordo claramente do terror que sentia temendo um futuro castigo em caso de não conseguir recuperar a nota, o dia da prova foi uma terça-feira junina se bem me lembro. Fiz tudo certinho nas primeiras sete questões, deixei a oitava por último por julgá-la a mais difícil das dez, e voltei minha artilharia mental à nona e à décima questões; ao completá-las, retornei à oitava na minha finita luta contra o relógio analógico que ficava acima da entrada da sala e me aturdia.

Era uma sala branca retangular de azulejos xadrez divididos entre o branco e o azul marinho à meia altura da parede, quatro ventiladores de teto e quatro fileiras de carteiras; eu estava por primeiro da segunda fileira a contar da esquerda para a direita. Contando comigo, havia cerca de 6 alunos restando quando, de duas carteiras atrás da minha, uma mão pairou no meu ombro direito: olhei para trás e era um colega em busca de "tirar dúvidas", e eu não sabia bem como reagir, pois francamente nunca havia passado por uma situação daquelas antes.

Quem aplicava a prova era o astuto e não menos famoso professor de ciências Walber Aleluia​​, notável pelo seu sobrenome distinto e carisma com os alunos das turmas do 9° ano, com quem sempre realizava projetos. Ele estava ocupado com alguma leitura para o laboratório em seu birô, mas ouviu o cochicho do colega que me falava e que tentava colar da minha prova, e confiscou os exames de ambos. "É o meu fim! Minha prova será anulada", pensava, "estou lascado! O cinto de mainha vai queimar minha espinha". Sensação ingrata.

Cheguei em casa por volta das 10h40min ou 11h, depois de uns 20 minutos no ônibus da linha 055/Chã Nova - Centro (via Chã da Jaqueira), e, cheio de vergonha, fui logo desembuchando a verdade a fim de apelar à piedade materna. Minha mãe me repreendeu, mas disse que esperaria o resultado. Para a minha fortuna e boa sorte do meu couro, o professor Walber não anulou minha prova inteira, mas somente aquela questão 8 que estava prestes a concluir. Fui então aprovado naquele bimestre com nota 9, recuperado com sucesso, e me livrei de uma surra quase certa. Nunca fui bom com os números, mas depois daquela experiência tão terrível, viveria o resto daquele ano e do seguinte em diligência matemática máxima conforme podia, sempre a contar com o ensino e o auxílio do professor Abelardo para o meu aprendizado.

Ainda que houvesse deixado o professor Abelardo para trás em 2013, sempre me cumprimentava com alegria ao me encontrar nos corredores ou rampas da escola, não raro com sua mochila de ombros abarrotada de coisas, mas curiosamente carregada em uma das mãos. Era uma figura ímpar.

Deus é bom e providente, toda esta boa história me veio em mente ao passar pela Av. Abelardo Lima, na Gruta de Lourdes, o que me remeteu ao meu antigo professor, verdadeiro mestre de sua arte e transmissor de seu conhecimento. Não sei como o professor Abelardo se encontra hoje, se está bem ou mesmo vivo, tendo em vista sua idade relativamente avançada; mas espero sinceramente que esteja bem e sob os cuidados de Deus e da Virgem Dolorosíssima. Era um verdadeiro professor em sentido estrito do termo, rigoroso no ensino mas muito solícito extraclasse, grande de coração; e foi o melhor professor de matemática que tive na vida.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Crítica: A arte entre os heróis em "The Batman" (2022)

The Batman tem Robert Pattinson como seu protagonista.

João Medeiros

Assisti ao novo filme do Morcego. Sem rodeios, irei direto ao ponto: The Batman é um filme de arte. Todos os atores fizeram um trabalho espetacular, mas gostaria de destacar o diretor e roteirista Matt Reeves e congratulá-lo, e aos demais, e tratar aqui especificamente sobre os papéis de Robert Pattinson e Paul Dano, respectivamente o protagonista e o antagonista do filme. Eles não só surpreenderam, e muito, as minhas expectativas, mas a obliteraram e dizimaram por inteiro. Foi tudo melhor e muito mais do que eu esperava.

Estamos diante da encarnação mais visceral do Homem-Morcego já feita até o presente. Mas se engana quem pensa que o caráter visceral da película fica restrito às cenas de ação. Visceral é a palavra que caracteriza The Batman em todas as áreas possíveis. Pattinson apresenta um Bruce Wayne jovem, algo fragilizado, obcecado com as consequências do passado familiar e os efeitos colaterais delas, porém paradoxalmente estoico, e que carrega tudo consigo quando veste a máscara e põe a capa sobre si, a cobrir suas cicatrizes internas e externas, e como que a esconder o peso do mundo que carrega em seus ombros. Em seu Year Two como Batman, Bruce Wayne encontra-se sempre em lutas consigo e pelos outros, perambulando entre o vigilante que é, a Vingança, e o herói que almeja ser, sinal de uma esperançosa justiça.

E a esse Bruce Wayne ascético, dissoluto, introspectivo e recluso, ainda confuso com quem é e por que luta, é que Pattinson dá vida de forma brilhante e melancólica em sua atuação sempre visceral e obstinada, que vai até o fim em cada detalhe e em tudo o que faz. Não é o famoso playboy a que todos estamos acostumados ver nos cinemas, mas o outro lado nunca revelado nas telas: um Bruce Wayne recluso que faz somente o mínimo necessário para manter as aparências enquanto herdeiro da família Wayne. Mas mesmo que tenha menos tempo de tela, é Bruce Wayne quem circunda o Batman e quem o norteia com sua vendetta, e só depois dá-se conta disso e dos problemas que tal comportamento lhe inflige ao ver a consequência de seus atos; e percebe então da necessidade da justa medida, do equilíbrio necessário, de um princípio novo e bom que norteie o Homem-Morcego a sair daquele vigilantismo de certo sabor niilista.

Em Robert Pattinson, temos um Bruce Wayne em aprendizado para um Batman em aprendizado, em renovação de ideais. O Batman é a noite, é a sombra; e, na noite, é a justiça, ou a esperança dela; e nada está mais distante da justiça que o egoísmo da vingança. A cada vez que, na noite, o sinal do morcego brilha no céu, o Batman torna-se onipresente. Não fisicamente, isto é impossível. A sua presença está em sua ausência, pois pode estar em qualquer lugar da escuridão de Gotham. É a onipresença do temor da justiça visado pelo nosso herói.

Numa sociedade repleta de insanidade, a escuridão das dúvidas de Bruce Wayne cede seu lugar à luminosidade das certezas, e o Batman, como a própria noite, faz a sociedade iniciar seu trânsito para o amanhecer, para a luz. É somente quando consegue ordenar-se a si que o Homem-Morcego consegue trazer alguma ordem ao caótico mundo em que vive. É somente quando enxerga o bem de forma plena e sob as lentes certas que ele detesta verdadeiramente o mal, e age não só para erradicá-lo como para ser modelo do que é bom.

Em sua biografia sobre São Tomás, Chesterton diz que “um santo pode ser feito de todo tipo de homem”; de igual forma, um herói pode ser feito de todo tipo de homem, mesmo daquele que se encontra perdido, e, para o homem ordinário, nada é tão heroico quanto confrontar-se e aos próprios medos e vícios por amor e em ordem ao bem, à verdade e a Deus. Como certa vez ouvi de um velho professor, a santidade é o maior dos atos de heroísmo. E mesmo alguém cheio de feridas como Bruce Wayne, ainda que não seja um santo, poderia sê-lo, pois quem busca por renovação de si e encontra Cristo, Nele se acha renovado em plenitude, pois o Redentor é quem faz nova todas as coisas.

Já Paul Dano, o ator que interpreta o Charada, chegou-me ao conhecimento como um completo desconhecido, e do qual só soube o nome ao ver os créditos da película; e que me surpreendeu sobremaneira. Seu Charada é apresentado como um completo lunático, louco, um sociopático psicopata autenticamente maníaco e insano. Reeves faz uma abordagem simples, como que um feijão com arroz muitíssimo bem temperado pela absurdamente convincente e visceral atuação de Paul Dano, claramente inspirado em assassinos em série do mundo real – e, no cinematográfico, sobe ao nível seleto de um Le Chiffre (Casino Royale), de Mads Mikkelsen, ou de um Scorpio (Dirty Harry), de Andy Robinson. E tudo isto sem as humanizações idióticas tão habituais do antagonista que está tão em voga na moda cinematográfica atual, fruto de uma sociedade decadente que busca normalizar o anormal, vilificar o bem e nobilizar o mal – a exemplo do que fizeram com o Thanos do MCU, na tentativa de justificar o seu repugnante neomalthusianismo.

A atuação de Paul Dano é realmente memorável! Enquanto a charada ainda não foi descoberta, a sua presença se dá pelo enigma do homem mascarado; depois de descoberta, com a sua presença realmente alucinada. É um lunático com motivações distorcidas que são frutos de sua mente doentia e instável, ególatra e narcisista, e o diretor deixa isto claro. O Charada foi a grande surpresa do filme, com tamanha encarnação da personagem antagônica e um Paul Dano completamente doado à interpretação.

Gostaria de ressaltar brevemente as cenas de ação, que foram sublimemente realistas, as melhores já feitas para um filme do Morcego – e que serão um verdadeiro deleite para os fãs da série de jogos Batman Arkham que forem aos cinemas. A fotografia foi um deleite à parte, com o fantástico jogo de luzes variantes entre o preto e cinza escuro e certos tons de fundo de um laranja terroso. Todas as loas sejam dadas a Greig Fraser.

Michael Giacchino surpreende com sua trilha sonora espetacularmente densa, com repetições, descamações, variações e sobreposições sobre peças já existentes ou por ele compostas, e que foram esmiuçadas e tolhidas como uma cana-de-açúcar até produzir o último insumo e não sobrar nada, pois foi completa para o todo da obra. É simplesmente de tirar o fôlego! Incluindo a inserção do singelíssimo “Ave Maria” de Schubert – peça que figura entre as minhas favoritas – e sua repetição menor com variações; ou mesmo com o grunge “Something in the Way”, do Nirvana, que espelha em si os percalços da trama.

The Batman supera com muito êxito a trilogia Nolan, incluindo o célebre The Dark Knight, o segundo filme da trilogia, considerado seu melhor, que é marcado pela performance eletrizante de Heath Ledger como Coringa. Temos em The Batman um herói que é a melhor encarnação do herói e que deseja ardentemente ser um herói – ainda que erre em sua caminhada até lá –, contrastando com os heróis cinzentos glorificados na última década, que são quase anti-heróis; seu vilão é de uma memorável atuação sombria que faz esquecer em definitivo a caricata versão de Jim Carrey no péssimo Batman Forever (onde não se sabe se interpretava o Charada ou o Máscara). E mais do que isso, The Batman é o primeiro filme de herói que ascende a um nível artístico. É um filme sério: é um filme de arte.

Primeiro, tivemos o Joker de Todd Phillips, que inaugurou este patamar de filmes de arte baseados em quadrinhos; agora, é elevado o filme de herói ao patamar da arte; patamar este que as enormidades de efeitos gráficos dos filmes da Marvel, tão cheios de si mas tão vazios, reduzidos à galhofas e/ou piadas indecentes, caça-níqueis, nunca conseguiria atingir, e cuja “consolação” foi mal acostumar, alienar e degenerar toda uma geração que foi ao cinema assistir seus filmes.

Hoje, a Academia do Oscar criou uma categoria de melhor filme por votação pelo Twitter – o que é, honestamente, o cúmulo do ridículo. Premiar qualquer biboca em formato de vídeo pelo único critério de “ter mais fãs” constitui, por parte da Academia, um verdadeiro desprezo e insulto à sétima arte. É uma oficialização do que já fazem há alguns anos, com critérios duvidosos de uma pseudojustiça social (a mesma que, a certo momento de raiva, a ladra Selina Kyle tenta inculcar no Morcego), “diversidade” e “inclusividade”, com as suas cotas sexuais, raciais ou mesmo etnogeográficas.

Da mesma forma que Joker não precisou disso para ganhar os seus merecidos prêmios, The Batman certamente não precisará; pois são ambos filmes de arte, o que sempre foi tradicional premiar, desde que cumpridas as devidas competências – e o filme dirigido por Matt Reeves sem dúvidas as cumpre!

Do começo ao fim é um filme. Um filme de verdade. É o melhor filme do Batman já feito e, muito provavelmente, o melhor filme de herói já feito. A película conta com um roteiro de primeira classe e verdadeiramente baseado nos quadrinhos (o que é uma raridade!), com inspirações no cinema noir clássico e no thriller psicológico, sem o abuso de reviravoltas que satura o cinema nos últimos anos e sem as desnecessárias “inovações” tão queridas atualmente. Em The Batman, Matt Reeves dirige com excelência enquanto Robert Pattinson nos entrega o Batman definitivo, e o espectador também é brindado com atuações memorabilíssimas de Paul Dano como Charada e Colin Farrell como o Pinguim, e com atuações boas e sólidas de Jeffrey White como James Gordon e John Turturro como Carmine Falcone, Zoë Kravitz como Selina Kyle e Andy Serkis como Alfred Pennyworth.

The Batman é um filme de arte.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Crônica: Parce, Domine!

João Medeiros

Parce, Domine, parce populo tuo; ne in aeternum irascaris nobis.
(Antífona Parce, Domine)

É desta forma, com um contrito pedido de perdão, que o coral entoa em perfeita melodia gregoriana o arrependimento dos homens durante a Quaresma. O que, talvez, pouco se sabe, é que a antífona quaresmal toma seu título de um versículo veterotestamentário. “Perdoai, ó Senhor, o vosso povo”, clamava um angustiado profeta Joel (Jl II, 17) a implorar o perdão de Deus pelos castigos que recebiam os hebreus, merecidos por seus ouvidos moucos e desobediência ao Altíssimo.

Aproximadamente três milênios depois, os católicos sofrem penas ainda mais duras que os hebreus recém-saídos do exílio babilônico, pois enquanto estes sofreram duras penas físicas e materiais, aqueles sofrem com a maior das penas nesta terra, diretamente no espírito, causada pela ausência dos Sacramentos no venerabilíssimo e antiquíssimo Rito Romano. E não pensem que estamos a tratar dos ritos segundo as reformas realizadas e promulgadas pelo Papa Paulo VI: não nos referimos a fabricações!; com efeito, tratamos do verdadeiro e legítimo Rito Romano conforme fora recebido e nos transmitido pelos apóstolos e seus sucessores, e codificado de forma célebre pelos papas São Gregório Magno e São Pio V.

Desde o Concílio Vaticano II (1962-65), os católicos suportamos fardos antes inimagináveis na vida cristã. Se antes era imaginável que um fiel cristão pudesse sofrer das mais diversas perseguições por inimigos de Cristo e da Igreja, ou mesmo perseguições dentro da Igreja por fidelidade à Verdade ante a membros necrosados que insistem na tentativa de apodrecer os membros saudáveis; hoje, a perseguição não mais se dá com só os fiéis. Não, não mais. A estratégia do Inimigo mudou, e aquele seu ataque explícito ao Deus da Eucaristia que costumava ocorrer somente entre hereges declarados, como os cátaros e os luteranos – todos com claro viés blasfematório ou sacrílego –, há mais de meio século tornou-se uma infelicíssima e condenável normalidade dentro da Igreja Católica. Agora, o Inimigo ataca o que há de mais precioso ao coração católico: Nosso Senhor Jesus Cristo em corpo, sangue, alma e divindade na Sacratíssima Eucaristia.

Para o grande choque de neoconservadores, que ao longo dos quase nove anos de triste reinado do atual Pontífice fizeram possível o impossível imbróglio mental para sustentar a continuação do espetáculo circense de perseguição "morde e assopra", o Papa Francisco realmente desmontou o circo hegeliano montado por seus predecessores. Ou melhor dizendo, concluiu-o. Agora não são meramente as avalanches de entrevistas duvidosas dadas a jornalistas ateus com passaporte vitalício à Casa Santa Marta (afinal, o Palácio Apostólico foi jogado às traças, para não falarmos de Castel Gandolfo, ou melhor, Museu Gandolfo...), mas a Pachamama em um andor sobre os ombros de bispos católicos na Basílica de São Pedro, entronizada no coração da Igreja Universal; e a Declaração de Abu-Dhabi a repetir o falso ensinamento conciliar de que católicos e maometanos adoram o mesmo Deus. É, mais do que tudo, a perseguição que tenta ser (embora jamais será) implacável à Sacrossanta Missa Romana, cuja doutrina é pura, católica e representa tudo o que é combatido por modernistas há quase dois séculos – desde bem antes do desastroso Concílio, e para os que dizem que os tradicionais cremos que a Crise começou ontem: não passam de mentirosos cheios de malícia.

E os neoconservadores dividem-se: os críticos criticam, pois a meia medida de Bento XVI, o seu Summorum Pontificum, é intocável para eles, mas, ao fim, calam-se em nome da “obediência”, a que chamamos subserviência servil – com todo o pleonasmo possível; já os “obedientes” seguem o progressismo que ontem mesmo praguejavam, num contrassenso ilógico verdadeiramente descomunal e irracional. Os primeiros trancafiam suas consciências, os segundos... já a venderam há muito tempo.

Como já dissemos cá neste espaço por diversas vezes, a repetir autores muito melhores e mais competentes: é a Revolução que se divide entre jacobinos e girondinos. Os primeiros a avançam, os segundos asseguram o processo revolucionário já conquistado. Modernistas à esquerda e à direita, progressistas e conservadores. Igualmente liberais, diferindo somente em grau. Ambos a rejeitar a Tradição Católica.

A Traditionis Custodes veio. As responsa ad dubia com respeito a este motu proprio saíram – enquanto a resposta sobre a trágica Amoris Laetitia morre caquética e decadente, a exemplo da hermenêutica da continuidade donde surgiu, engolida pela pseudo-obediência do neoconservadorismo, tão rebelde e revolucionário em sua origem quanto o progressismo: duas cabeças de uma mesma hidra modernista. Enquanto a Missa Romana vai sendo formal e ilicitamente abandonada em favor da missa moderna, que é dita ser “única lex orandi” pelo Sumo Pontífice.

Mas sejamos sinceros: a verdade é que os tradicionais não passamos de mentirosos, soberbos e cismáticos que pouco ou nada rezamos, que dirá ter participação nos grupos paroquiais. Quem sabe se admitíssemos que somos muito santarrões para participar da pastoral de acolhida na nova missa, para “apresentar as oferendas” do fruto e do trabalho humano ao altar-mesa ou tornar-se membro de alguma dessas centenas, quiçá milhares, de comunidades carismáticas. Talvez de alguma tertúlia informativa e humanista do Opus Dei sobre a amizade segundo algum desenho animado de sucesso? Sua missa nova é “bem celebrada”, ad orientem e em latim no Centro Jequitinhonha; e eles também são mais polidos e bem-vestidos, sempre alinhados, como bons advogados e engenheiros que são. Em um círculo de alta sociedade como este, talvez até façamos parte da alta cultura, condiz muito com a nossa soberba. Eureca! É isso! Assim seremos aceitos pelos conselhos presbiterais diocesanos e faremos parte da democracia cristã!

Perdoem-nos pelo devaneio, fomos apanhados distraídos a formar nosso imaginário com uma vida paroquial ativa na Paróquia São Paulo VI...

Antes, muitos cristãos ficavam sem a Santa Missa e os demais Sacramentos, fosse por falta de sacerdotes ou das inovações tecnológicas de transporte, dos trens ao avião, que hoje a todos beneficiam e facilitam o acesso aos lugarejos mais remotos. Hoje, os católicos ficam sem os Sacramentos porque estes lhes são “caridosamente” negados por seus bispos, que os trocaram por Sacramentos que visam conciliar o inconciliável: a catolicidade e o humanismo. Numa “caridade” conciliar, onde há espaço de autoridade para hereges, cismáticos e pagãos, é impossível que sobre qualquer brecha para católicos, cuja palavra para todos esses é “fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc I, 15).

Se os bispos modernistas são os traditionis custodes, então os fiéis que eles desampararam ou abandonaram são, muito bem, os captivi modernistarum. As horas passam e o céu se fecha. A apostasia se espalha e a ampulheta se afunila. Diferentemente do que pregam os modernistas à Lammenais e Maritain, o Reino de Cristo já está aqui e é a Igreja, e o Sacrossanto Rei lançará sua condenação àqueles que O negam.

A Timóteo, São Paulo aconselha que se afaste dos frívolos, pois “as palavras dessa gente destroem como a gangrena” (II Tm II, 17). Não adianta, pois, abandonar a guerra pela Cidade de Deus em nome do “diálogo fraterno”, da diplomacia, do “zelo pela casa comum” em prol da “fraternidade universal”; tampouco achar-se em “guerras culturais”, cujo fim é político, desalmado e nada faz exceto por alimentar um ideológico espírito de oportunismo e ativismo, como fazem muitos neoconservadores para enganar os incautos e passar-se por tradicionais. Esta é a necrose espiritual, a gangrena de que fala o santo.

“Nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras”, diz o Apóstolo dos Gentios (II Tm II, 5). E é isto que os tradicionais devemos fazer: lutar segundo as regras, pregando “oportuna e inoportunamente” a “sã doutrina da salvação” (II Tm IV, 2-3), combater o bom combate, guardar a fé (II Tm IV, 7). Somente quem “se conservar puro e isento dessas doutrinas, será um utensílio nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para todo uso benéfico” (II Tm II, 21), e para isso, é preciso coragem face às duras perseguições e enfrentamentos. Tal como São José a guardar corajosamente sua Puríssima Esposa e seu Santíssimo Filho adotivo, Deus ordenou que guardássemos a Fé. Este é o bom combate, cujo galardão é a coroa da justiça. A guerra já foi ganha e a vitória é de Cristo, que já venceu na Cruz, e “se morrermos com ele, com ele viveremos. Se soubermos perseverar, com ele reinaremos. Se, porém, o renegarmos, ele nos renegará” (II Tm II, 11-13) e dirá peremptoriamente “nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!” (Mt VII, 23).

“Perdoai, Senhor, perdoai o vosso povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações a escarneçam. Porque os povos diriam: onde está o seu Deus?” (Jl II, 17). Por mais que a voz daqueles que são fiéis à Igreja e a Cristo esteja abafada por maus pastores, estejamos certos de que é escutada, como foi a voz do santo profeta. E as nações apóstatas perecerão, os necrosados serão decepados, a herança será plenamente restaurada e Deus se manifestará em toda Sua glória e realeza. Pois Deus escuta a Seus filhos, mesmo que encontrem-se no fundo do abismo, porque “o Bom Pastor expõe a sua vida pelas suas ovelhas” (Jo X, 11). Pois Nossa Senhora é Auxiliadora dos Cristãos e Porto dos Náufragos, e, com o perdão do gracejo, é Mãe, e não madrasta. Basta que peçamos e nos será dado, a entoar o Parce, Domine: “aplaquemos a ira vingadora, choremos diante do Juiz, clamemos com voz suplicante e prostrados digamos todos juntos: perdoai, ó Senhor, o vosso povo!”