quinta-feira, 22 de julho de 2021

Artigo: A Tradição Católica entre o martelo e a bigorna

João Medeiros

No dia 16 de julho de 2021, os católicos de todo o mundo acordamos aflitos diante da notícia da publicação do novo motu proprio do Papa Francisco, cujo nome, Traditionis Custodes, tinha tudo para ser uma bela notícia. "Guardiões da Tradição", que belo nome! Mas aquilo que aparentava ser bom era somente a ponta de um iceberg a atrapalhar, uma vez mais, o florescimento da Tradição da Igreja – coisa muito recorrente em terras romanas desde o insólito Concílio do aggiornamento.

Em Summorum Pontificum, o Papa Bento XVI teve a oportunidade de fazer uma autêntica paz litúrgica, de revogar as disposições vaticano-segundas e o Novus Ordo, mas recusou fazer isso. Pelo contrário, optou por "liberar" a Missa Romana¹ e a pôs em igual patamar à nova liturgia extremamente problemática e heretizante², que continuou a ser o rito ordinário da Igreja Latina – ou melhor, a tal "forma ordinária" como chamou o papa em sua ficção jurídica, sendo o rito antigo a "forma extraordinária" na tentativa de livrar-se das oposições de bispos mais progressistas.

O Papa Ratzinger, conservador não da Tradição, mas sim do Concílio, escolheu, como bom discípulo da Nouvelle Theólogie, por seguir a maneira da dialética hegeliana em nome de uma falsa paz litúrgica: tese, antítese e síntese. "Aliás, as duas Formas do uso do Rito Romano podem enriquecer-se mutuamente", escreveu o então Pontífice na carta aos bispos anexa a seu motu proprio. A tese sendo o rito genuinamente católico; a antítese sendo o rito fabricado e equivocamente católico; por fim, a síntese, o produto híbrido que viesse a ocorrer desse "contato" entre ambas as liturgias: a "reforma da reforma". Uma faca de dois gumes. No mesmo Summorum Pontificum, Bento XVI afirmara que a Missa Tradicional nunca havia sido ab-rogada.

"O segundo grande acontecimento que ocorreu no começo dos meus anos de Ratisbona foi a publicação do "Missal", de Paulo VI, com a proibição quase total do "Missal" anterior, após uma fase de transição de cerca de seis meses. O facto de, após um período de experiências, que amiúde desfiguraram por completo a liturgia, se passar a ter um texto litúrgico vinculativo, era de saudar como algo seguramente positivo. Mas fiquei estupefacto com a proibição do 'Missal' antigo, dado que nunca na história da liturgia se verificara uma situação semelhante."

— Joseph RATZINGER (Papa Bento XVI). IN: A Minha Vida (Livros do Brasil, 2010, p. 106)

Todavia, contava outras coisas enquanto cardeal, somente a confirmar o que havia dito Paulo VI, o Papa do Novus Ordo, em discurso num consistório secreto de 1976:

"A adoção do novo "Ordo Missae" certamente não é deixada ao critério dos sacerdotes ou dos fiéis: a Instrução de 14 de junho de 1971 previa a celebração da Missa na forma antiga, com a autorização do ordinário, apenas para padres idosos ou enfermos, que oferecem o Sacrifício Divino sine populo. O novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após madura deliberação, a pedido do Concílio Vaticano II."³

A intenção conciliar era de jogar a Missa Tradicional no oblivion, no esquecimento, no calabouço mais profundo da história, transformando a Missa que santificou a Igreja por milênios em mero prêmio de consolação para padres velhos e doentes demais para aprenderem o rito deformado. Cremos até ser possível afirmar que a intenção de Paulo VI era de acabar com toda a Missa até meados dos anos 90 ou 2000, quando esses padres velhos e doentes já teriam morrido. Mas Paulo VI mesmo, com suas próprias palavras, prova que a argumentação dos neoconservadores e hermeneutas continuístas de todo tipo, a famosa "a missa nunca foi proibida!", não passa de mentira e desonestidade.

Hoje, não mais. Francisco segue somente a linha de seus antecessores: de Paulo VI na Instrução de 14 de Junho de 1971, de João Paulo II em Quattuor Abhinc Annos e Ecclesia Dei Adflicta, de Bento XVI em Summorum Pontificum. O Pontífice simplesmente fechou o cerco hegeliano e acabou com a tal "forma extraordinária": pôs a Missa Católica na ilegalidade e na marginalidade, e tratou aqueles que a celebram e assistem como párias, católicos de segunda classe ou cismáticos. A "forma extraordinária" da ficção jurídica ratzingeriana foi demolida por Francisco com todas as letras: pois o Novus Ordo é "a expressão única da lex orandi do rito romano", como diz em Traditionis Custodes.

Agora é, pois, para o Papa Bergoglio, a hora da síntese, como afirma claramente na carta aos bispos anexa ao seu motu proprio.

"As indicações sobre o modo de proceder nas dioceses são ditadas sobretudo por dois princípios: por um lado, cuidar do bem daqueles que estão enraizados na forma antiga de celebração e precisam de tempo para retornar ao rito romano promulgado por São Paulo VI e São João Paulo II. [...] Ao mesmo tempo, peço-lhes que assegurem que toda liturgia seja celebrada com decoro e fidelidade aos livros litúrgicos promulgados depois do Concílio Vaticano II, sem excentricidades que facilmente degeneram em abusos. A esta fidelidade às prescrições do Missal e aos livros litúrgicos. Seminaristas e novos sacerdotes devem ser formados na fiel observância das prescrições do Missal e dos livros litúrgicos."⁴

Mas não nos enganemos: o Papa Francisco é o atual Papa, não Bento XVI – que renunciou validamente em 2013 –, como querem crer e fazer crer alguns; tampouco a Cátedra Petrina está vazia: o sedevacantismo é um erro gravíssimo!

Não há ruptura doutrinal alguma entre os papas conciliares, como querem fazer crer alguns "continuístas críticos", muito pelo contrário, é a pura e simples continuidade de Francisco e do magistério conciliar: proíbe a Missa Tradicional em nome do Concílio e propõe o hibridismo litúrgico (que Deus nos livre!) do "Novus Ordo bem celebrado" como uma falsa paz litúrgica.

"Mas essa missa dita de São Pio V, como se vê em Écône [Suíça, sede da Fraternidade Sacerdotal São Pio X], se torna o símbolo da condenação do Concílio. Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo. Se fosse acolhida essa exceção, o Concílio inteiro arriscaria vacilar. E consequentemente a autoridade apostólica do Concílio". 

— PAULO VI apud GUITTON. IN: GUITTON, Jean. Paolo VI Segreto. 4ª edição. Milano: San Paolo, 2002, pp. 144-145. Título original Paul VI Secret, Desclée de Brouwer, Paris.

Jean Guitton era amigo próximo e confidente de Paulo VI, e relatou em seu livro Paulo VI Secreto o que disse o papa em resposta às suas proposições, entre elas, a de autorização da Missa Romana, que citamos acima.

Na mentalidade conciliar, retomar a Missa Tradicional é condenar o Concílio. E isto não está errado: a Missa Tradicional, Romana, é a celebração católica, a adoração do Deus Trino e Uno; a Missa do Concílio Vaticano II é a celebração ambígua, católica por equívoco, humanista, onde o homem é posto no centro porque, como disse Paulo VI em 7 de dezembro de 1965, no discurso final do Concílio: "Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós —  e nós mais do que ninguém somos cultores do homem".

"Porque “as celebrações litúrgicas não são atos privados, mas sim da Igreja, que é o sacramento da unidade ”, devem realizar-se em comunhão com a Igreja. O Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo que reafirmou os laços externos de incorporação na Igreja - a profissão de fé, os sacramentos, de comunhão - afirmou com Santo Agostinho que permanecer na Igreja não só “com o corpo”, mas também “com o coração” é uma condição para a salvação." (FRANCISCO, Traditionis Custodes, 2021)

É curioso que tais palavras venham do Papa do Sínodo da Amazônia e da Declaração de Abu Dhabi, quando ele mesmo em declarações diversas e o inteiro magistério conciliar, com seus "santos", evidenciam fartamente o exato oposto.

"Mas o desígnio da salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia." (Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, 1964)

"Também não poucas acções sagradas da religião cristã são celebradas entre os nossos irmãos separados. Por vários modos, conforme a condição de cada Igreja ou Comunidade, estas acções podem realmente produzir a vida da graça. Devem mesmo ser tidas como aptas para abrir a porta à comunhão da salvação. Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja católica." (Decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo, 1964)

"A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões [pagãs, hinduísmo e budismo] existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo. 14, 6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas." (Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não-cristãs, 1965)

"Descobre-se no diálogo como são diversas as vias que levam à luz da fé, mas como apesar disso é possível fazê-las convergir para o mesmo fim. Ainda que sejam divergentes, podem tornar-se complementares, levando o nosso raciocínio para fora das sendas comuns e obrigando-o a aprofundar as investigações e a renovar os modos de expressão. [...] Mas quais as formas com que apresentaremos o diálogo da salvação? São múltiplas as formas do diálogo da salvação. Obedece a exigências ensinadas pela experiência, escolhe os meios convenientes, não se prende a vãos apriorismos nem se fixa em expressões imóveis, quando estas tenham perdido o poder de interessar e mover os homens. [...] A fé é dom de Deus, e só Deus marca no mundo os caminhos e as horas da salvação." (PAULO VI, Ecclesiam Suam, 1964)

"Porque, pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. [...] Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimensão. Não se trata do homem « abstracto », mas sim real: do homem « concreto », « histórico ». Trata-se de « cada » homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério." (JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis, 1979)

"Se para todas as Comunidades cristãs os mártires são a prova do poder da graça, estes contudo não são os únicos que testemunham tal poder. Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão na comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação." (JOÃO PAULO II, Ut Unum Sint, 1995)

Então por que, diante disso tudo, seria "permanecer na Igreja 'não só com o corpo', mas também 'com o coração' uma condição para a salvação" na economia salvífica vaticano-segunda? Contudo, não há engano nem ruptura de Francisco com seus antecessores conciliares: é que tal condição vale somente para aqueles integralmente católicos: estes não têm salvação! Enquanto que para os [cismáticos] ortodoxos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, pagãos de qualquer tipo, até mesmo humanistas, "são diversas as vias que levam à luz da fé", pois "a fé é dom de Deus, e só Deus marca no mundo os caminhos e as horas da salvação", "porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério". É a habitual contradição vaticano-segunda da tal "plena comunhão" – mais uma das ficções jurídicas conciliares –, que aos católicos acusa, com ira, "cismáticos!" e aos cismáticos chama de "irmãos na Fé". É que o pecado capital da religião do "novo humanismo" e dos "cultores do homem" é um só: o pecado de não aderir a ela, como fazem os "cismáticos" lefebvristas e todos esses malditos tradicionalistas! "Modernistas de direita" é o que são!

Não há como haver paz ou mesmo enriquecimentos entre um rito que glorifica a Deus Tri-Uno, onde Cristo Sumo Sacerdote imola-se ao Pai através do Espírito Santo, por amor ao Pai e depois a nós, servindo-se do Sacerdote: onde os Mistérios da Fé Católica são perfeita e integralmente expressados; e um rito que glorifica o homem e oferece a Deus, como Caim, o "fruto da terra e do trabalho humano", como expressa o ofertório do Novus Ordo.

O Mistério da Cruz é o que nos sustenta e vivifica, e nós não podemos ceder um único milímetro em defesa dele. É porque amamos a Deus e "a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade" (cf. I Tm III, 15) que nós não podemos mudar ou ceder um milímetro sequer, mas "professar clara e constantemente a doutrina católica, e propagá-la o mais que se puder."⁵. "Não será por estratégias humanas que se ganhará esta guerra, mas pela fidelidade ao depósito da Fé até o preço de nosso sacrifício pessoal e espiritual"⁶, e temos de estar dispostos a pagar este preço, pois Cristo, Deus mesmo encarnado, pagou um muito maior com seu Preciosíssimo Sangue: o preço da nossa redenção. A vitória só nos virá pelo Rosário, nosso remédio; pela Virgem Santíssima que esmaga a cabeça da serpente e a todas as heresias, e nos mantém junto à Paixão de seu Diviníssimo Filho.

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1. A Missa Romana nunca poderia ser proibida, abolida ou ab-rogada, por mais que tenham tentado proibi-la em grave abuso de autoridade: a lei iníqua não é lei e não deve ser seguida.

2. Que tende à heresia ou tangencia o herético.

3. PAULO VI. Discorso del concistoro segreto del Santo Padre Paolo VI per la nomina di venti cardinali. 24 de maio de 1976. Disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/it/speeches/1976/documents/hf_p-vi_spe_19760524_concistoro.html

4. FRANCISCO. Traditionis Custodes. 16 de julho de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/en/motu_proprio/documents/20210716-motu-proprio-traditionis-custodes.html

5. LEÃO XIII. Sapientiae Christianae. 10 de janeiro de 1890. Disponível em: https://www.institutojacksondefigueiredo.org/documentos-da-igreja/carta-enciclica-sapientiae-christianae

6. YAÑEZ, Miguel Ángel. Francisco não se equivoca. 12 de julho de 2021. Disponível em: https://www.estudostomistas.com.br/2021/07/francisco-nao-se-equivoca.html

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