João Medeiros
“Parce, Domine, parce populo tuo; ne in aeternum irascaris nobis.”
(Antífona Parce, Domine)
É desta forma, com um contrito pedido de perdão, que o coral entoa em perfeita melodia gregoriana o arrependimento dos homens durante a Quaresma. O que, talvez, pouco se sabe, é que a antífona quaresmal toma seu título de um versículo veterotestamentário. “Perdoai, ó Senhor, o vosso povo”, clamava um angustiado profeta Joel (Jl II, 17) a implorar o perdão de Deus pelos castigos que recebiam os hebreus, merecidos por seus ouvidos moucos e desobediência ao Altíssimo.
Aproximadamente três milênios depois, os católicos sofrem penas ainda mais duras que os hebreus recém-saídos do exílio babilônico, pois enquanto estes sofreram duras penas físicas e materiais, aqueles sofrem com a maior das penas nesta terra, diretamente no espírito, causada pela ausência dos Sacramentos no venerabilíssimo e antiquíssimo Rito Romano. E não pensem que estamos a tratar dos ritos segundo as reformas realizadas e promulgadas pelo Papa Paulo VI: não nos referimos a fabricações!; com efeito, tratamos do verdadeiro e legítimo Rito Romano conforme fora recebido e nos transmitido pelos apóstolos e seus sucessores, e codificado de forma célebre pelos papas São Gregório Magno e São Pio V.
Desde o Concílio Vaticano II (1962-65), os católicos suportamos fardos antes inimagináveis na vida cristã. Se antes era imaginável que um fiel cristão pudesse sofrer das mais diversas perseguições por inimigos de Cristo e da Igreja, ou mesmo perseguições dentro da Igreja por fidelidade à Verdade ante a membros necrosados que insistem na tentativa de apodrecer os membros saudáveis; hoje, a perseguição não mais se dá com só os fiéis. Não, não mais. A estratégia do Inimigo mudou, e aquele seu ataque explícito ao Deus da Eucaristia que costumava ocorrer somente entre hereges declarados, como os cátaros e os luteranos – todos com claro viés blasfematório ou sacrílego –, há mais de meio século tornou-se uma infelicíssima e condenável normalidade dentro da Igreja Católica. Agora, o Inimigo ataca o que há de mais precioso ao coração católico: Nosso Senhor Jesus Cristo em corpo, sangue, alma e divindade na Sacratíssima Eucaristia.
Para o grande choque de neoconservadores, que ao longo dos quase nove anos de triste reinado do atual Pontífice fizeram possível o impossível imbróglio mental para sustentar a continuação do espetáculo circense de perseguição "morde e assopra", o Papa Francisco realmente desmontou o circo hegeliano montado por seus predecessores. Ou melhor dizendo, concluiu-o. Agora não são meramente as avalanches de entrevistas duvidosas dadas a jornalistas ateus com passaporte vitalício à Casa Santa Marta (afinal, o Palácio Apostólico foi jogado às traças, para não falarmos de Castel Gandolfo, ou melhor, Museu Gandolfo...), mas a Pachamama em um andor sobre os ombros de bispos católicos na Basílica de São Pedro, entronizada no coração da Igreja Universal; e a Declaração de Abu-Dhabi a repetir o falso ensinamento conciliar de que católicos e maometanos adoram o mesmo Deus. É, mais do que tudo, a perseguição que tenta ser (embora jamais será) implacável à Sacrossanta Missa Romana, cuja doutrina é pura, católica e representa tudo o que é combatido por modernistas há quase dois séculos – desde bem antes do desastroso Concílio, e para os que dizem que os tradicionais cremos que a Crise começou ontem: não passam de mentirosos cheios de malícia.
E os neoconservadores dividem-se: os críticos criticam, pois a meia medida de Bento XVI, o seu Summorum Pontificum, é intocável para eles, mas, ao fim, calam-se em nome da “obediência”, a que chamamos subserviência servil – com todo o pleonasmo possível; já os “obedientes” seguem o progressismo que ontem mesmo praguejavam, num contrassenso ilógico verdadeiramente descomunal e irracional. Os primeiros trancafiam suas consciências, os segundos... já a venderam há muito tempo.
Como já dissemos cá neste espaço por diversas vezes, a repetir autores muito melhores e mais competentes: é a Revolução que se divide entre jacobinos e girondinos. Os primeiros a avançam, os segundos asseguram o processo revolucionário já conquistado. Modernistas à esquerda e à direita, progressistas e conservadores. Igualmente liberais, diferindo somente em grau. Ambos a rejeitar a Tradição Católica.
A Traditionis Custodes veio. As responsa ad dubia com respeito a este motu proprio saíram – enquanto a resposta sobre a trágica Amoris Laetitia morre caquética e decadente, a exemplo da hermenêutica da continuidade donde surgiu, engolida pela pseudo-obediência do neoconservadorismo, tão rebelde e revolucionário em sua origem quanto o progressismo: duas cabeças de uma mesma hidra modernista. Enquanto a Missa Romana vai sendo formal e ilicitamente abandonada em favor da missa moderna, que é dita ser “única lex orandi” pelo Sumo Pontífice.
Mas sejamos sinceros: a verdade é que os tradicionais não passamos de mentirosos, soberbos e cismáticos que pouco ou nada rezamos, que dirá ter participação nos grupos paroquiais. Quem sabe se admitíssemos que somos muito santarrões para participar da pastoral de acolhida na nova missa, para “apresentar as oferendas” do fruto e do trabalho humano ao altar-mesa ou tornar-se membro de alguma dessas centenas, quiçá milhares, de comunidades carismáticas. Talvez de alguma tertúlia informativa e humanista do Opus Dei sobre a amizade segundo algum desenho animado de sucesso? Sua missa nova é “bem celebrada”, ad orientem e em latim no Centro Jequitinhonha; e eles também são mais polidos e bem-vestidos, sempre alinhados, como bons advogados e engenheiros que são. Em um círculo de alta sociedade como este, talvez até façamos parte da alta cultura, condiz muito com a nossa soberba. Eureca! É isso! Assim seremos aceitos pelos conselhos presbiterais diocesanos e faremos parte da democracia cristã!
Perdoem-nos pelo devaneio, fomos apanhados distraídos a formar nosso imaginário com uma vida paroquial ativa na Paróquia São Paulo VI...
Antes, muitos cristãos ficavam sem a Santa Missa e os demais Sacramentos, fosse por falta de sacerdotes ou das inovações tecnológicas de transporte, dos trens ao avião, que hoje a todos beneficiam e facilitam o acesso aos lugarejos mais remotos. Hoje, os católicos ficam sem os Sacramentos porque estes lhes são “caridosamente” negados por seus bispos, que os trocaram por Sacramentos que visam conciliar o inconciliável: a catolicidade e o humanismo. Numa “caridade” conciliar, onde há espaço de autoridade para hereges, cismáticos e pagãos, é impossível que sobre qualquer brecha para católicos, cuja palavra para todos esses é “fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc I, 15).
Se os bispos modernistas são os traditionis custodes, então os fiéis que eles desampararam ou abandonaram são, muito bem, os captivi modernistarum. As horas passam e o céu se fecha. A apostasia se espalha e a ampulheta se afunila. Diferentemente do que pregam os modernistas à Lammenais e Maritain, o Reino de Cristo já está aqui e é a Igreja, e o Sacrossanto Rei lançará sua condenação àqueles que O negam.
A Timóteo, São Paulo aconselha que se afaste dos frívolos, pois “as palavras dessa gente destroem como a gangrena” (II Tm II, 17). Não adianta, pois, abandonar a guerra pela Cidade de Deus em nome do “diálogo fraterno”, da diplomacia, do “zelo pela casa comum” em prol da “fraternidade universal”; tampouco achar-se em “guerras culturais”, cujo fim é político, desalmado e nada faz exceto por alimentar um ideológico espírito de oportunismo e ativismo, como fazem muitos neoconservadores para enganar os incautos e passar-se por tradicionais. Esta é a necrose espiritual, a gangrena de que fala o santo.
“Nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras”, diz o Apóstolo dos Gentios (II Tm II, 5). E é isto que os tradicionais devemos fazer: lutar segundo as regras, pregando “oportuna e inoportunamente” a “sã doutrina da salvação” (II Tm IV, 2-3), combater o bom combate, guardar a fé (II Tm IV, 7). Somente quem “se conservar puro e isento dessas doutrinas, será um utensílio nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para todo uso benéfico” (II Tm II, 21), e para isso, é preciso coragem face às duras perseguições e enfrentamentos. Tal como São José a guardar corajosamente sua Puríssima Esposa e seu Santíssimo Filho adotivo, Deus ordenou que guardássemos a Fé. Este é o bom combate, cujo galardão é a coroa da justiça. A guerra já foi ganha e a vitória é de Cristo, que já venceu na Cruz, e “se morrermos com ele, com ele viveremos. Se soubermos perseverar, com ele reinaremos. Se, porém, o renegarmos, ele nos renegará” (II Tm II, 11-13) e dirá peremptoriamente “nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!” (Mt VII, 23).
“Perdoai, Senhor, perdoai o vosso povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações a escarneçam. Porque os povos diriam: onde está o seu Deus?” (Jl II, 17). Por mais que a voz daqueles que são fiéis à Igreja e a Cristo esteja abafada por maus pastores, estejamos certos de que é escutada, como foi a voz do santo profeta. E as nações apóstatas perecerão, os necrosados serão decepados, a herança será plenamente restaurada e Deus se manifestará em toda Sua glória e realeza. Pois Deus escuta a Seus filhos, mesmo que encontrem-se no fundo do abismo, porque “o Bom Pastor expõe a sua vida pelas suas ovelhas” (Jo X, 11). Pois Nossa Senhora é Auxiliadora dos Cristãos e Porto dos Náufragos, e, com o perdão do gracejo, é Mãe, e não madrasta. Basta que peçamos e nos será dado, a entoar o Parce, Domine: “aplaquemos a ira vingadora, choremos diante do Juiz, clamemos com voz suplicante e prostrados digamos todos juntos: perdoai, ó Senhor, o vosso povo!”
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