quinta-feira, 3 de março de 2022

Crítica: A arte entre os heróis em "The Batman" (2022)

The Batman tem Robert Pattinson como seu protagonista.

João Medeiros

Assisti ao novo filme do Morcego. Sem rodeios, irei direto ao ponto: The Batman é um filme de arte. Todos os atores fizeram um trabalho espetacular, mas gostaria de destacar o diretor e roteirista Matt Reeves e congratulá-lo, e aos demais, e tratar aqui especificamente sobre os papéis de Robert Pattinson e Paul Dano, respectivamente o protagonista e o antagonista do filme. Eles não só surpreenderam, e muito, as minhas expectativas, mas a obliteraram e dizimaram por inteiro. Foi tudo melhor e muito mais do que eu esperava.

Estamos diante da encarnação mais visceral do Homem-Morcego já feita até o presente. Mas se engana quem pensa que o caráter visceral da película fica restrito às cenas de ação. Visceral é a palavra que caracteriza The Batman em todas as áreas possíveis. Pattinson apresenta um Bruce Wayne jovem, algo fragilizado, obcecado com as consequências do passado familiar e os efeitos colaterais delas, porém paradoxalmente estoico, e que carrega tudo consigo quando veste a máscara e põe a capa sobre si, a cobrir suas cicatrizes internas e externas, e como que a esconder o peso do mundo que carrega em seus ombros. Em seu Year Two como Batman, Bruce Wayne encontra-se sempre em lutas consigo e pelos outros, perambulando entre o vigilante que é, a Vingança, e o herói que almeja ser, sinal de uma esperançosa justiça.

E a esse Bruce Wayne ascético, dissoluto, introspectivo e recluso, ainda confuso com quem é e por que luta, é que Pattinson dá vida de forma brilhante e melancólica em sua atuação sempre visceral e obstinada, que vai até o fim em cada detalhe e em tudo o que faz. Não é o famoso playboy a que todos estamos acostumados ver nos cinemas, mas o outro lado nunca revelado nas telas: um Bruce Wayne recluso que faz somente o mínimo necessário para manter as aparências enquanto herdeiro da família Wayne. Mas mesmo que tenha menos tempo de tela, é Bruce Wayne quem circunda o Batman e quem o norteia com sua vendetta, e só depois dá-se conta disso e dos problemas que tal comportamento lhe inflige ao ver a consequência de seus atos; e percebe então da necessidade da justa medida, do equilíbrio necessário, de um princípio novo e bom que norteie o Homem-Morcego a sair daquele vigilantismo de certo sabor niilista.

Em Robert Pattinson, temos um Bruce Wayne em aprendizado para um Batman em aprendizado, em renovação de ideais. O Batman é a noite, é a sombra; e, na noite, é a justiça, ou a esperança dela; e nada está mais distante da justiça que o egoísmo da vingança. A cada vez que, na noite, o sinal do morcego brilha no céu, o Batman torna-se onipresente. Não fisicamente, isto é impossível. A sua presença está em sua ausência, pois pode estar em qualquer lugar da escuridão de Gotham. É a onipresença do temor da justiça visado pelo nosso herói.

Numa sociedade repleta de insanidade, a escuridão das dúvidas de Bruce Wayne cede seu lugar à luminosidade das certezas, e o Batman, como a própria noite, faz a sociedade iniciar seu trânsito para o amanhecer, para a luz. É somente quando consegue ordenar-se a si que o Homem-Morcego consegue trazer alguma ordem ao caótico mundo em que vive. É somente quando enxerga o bem de forma plena e sob as lentes certas que ele detesta verdadeiramente o mal, e age não só para erradicá-lo como para ser modelo do que é bom.

Em sua biografia sobre São Tomás, Chesterton diz que “um santo pode ser feito de todo tipo de homem”; de igual forma, um herói pode ser feito de todo tipo de homem, mesmo daquele que se encontra perdido, e, para o homem ordinário, nada é tão heroico quanto confrontar-se e aos próprios medos e vícios por amor e em ordem ao bem, à verdade e a Deus. Como certa vez ouvi de um velho professor, a santidade é o maior dos atos de heroísmo. E mesmo alguém cheio de feridas como Bruce Wayne, ainda que não seja um santo, poderia sê-lo, pois quem busca por renovação de si e encontra Cristo, Nele se acha renovado em plenitude, pois o Redentor é quem faz nova todas as coisas.

Já Paul Dano, o ator que interpreta o Charada, chegou-me ao conhecimento como um completo desconhecido, e do qual só soube o nome ao ver os créditos da película; e que me surpreendeu sobremaneira. Seu Charada é apresentado como um completo lunático, louco, um sociopático psicopata autenticamente maníaco e insano. Reeves faz uma abordagem simples, como que um feijão com arroz muitíssimo bem temperado pela absurdamente convincente e visceral atuação de Paul Dano, claramente inspirado em assassinos em série do mundo real – e, no cinematográfico, sobe ao nível seleto de um Le Chiffre (Casino Royale), de Mads Mikkelsen, ou de um Scorpio (Dirty Harry), de Andy Robinson. E tudo isto sem as humanizações idióticas tão habituais do antagonista que está tão em voga na moda cinematográfica atual, fruto de uma sociedade decadente que busca normalizar o anormal, vilificar o bem e nobilizar o mal – a exemplo do que fizeram com o Thanos do MCU, na tentativa de justificar o seu repugnante neomalthusianismo.

A atuação de Paul Dano é realmente memorável! Enquanto a charada ainda não foi descoberta, a sua presença se dá pelo enigma do homem mascarado; depois de descoberta, com a sua presença realmente alucinada. É um lunático com motivações distorcidas que são frutos de sua mente doentia e instável, ególatra e narcisista, e o diretor deixa isto claro. O Charada foi a grande surpresa do filme, com tamanha encarnação da personagem antagônica e um Paul Dano completamente doado à interpretação.

Gostaria de ressaltar brevemente as cenas de ação, que foram sublimemente realistas, as melhores já feitas para um filme do Morcego – e que serão um verdadeiro deleite para os fãs da série de jogos Batman Arkham que forem aos cinemas. A fotografia foi um deleite à parte, com o fantástico jogo de luzes variantes entre o preto e cinza escuro e certos tons de fundo de um laranja terroso. Todas as loas sejam dadas a Greig Fraser.

Michael Giacchino surpreende com sua trilha sonora espetacularmente densa, com repetições, descamações, variações e sobreposições sobre peças já existentes ou por ele compostas, e que foram esmiuçadas e tolhidas como uma cana-de-açúcar até produzir o último insumo e não sobrar nada, pois foi completa para o todo da obra. É simplesmente de tirar o fôlego! Incluindo a inserção do singelíssimo “Ave Maria” de Schubert – peça que figura entre as minhas favoritas – e sua repetição menor com variações; ou mesmo com o grunge “Something in the Way”, do Nirvana, que espelha em si os percalços da trama.

The Batman supera com muito êxito a trilogia Nolan, incluindo o célebre The Dark Knight, o segundo filme da trilogia, considerado seu melhor, que é marcado pela performance eletrizante de Heath Ledger como Coringa. Temos em The Batman um herói que é a melhor encarnação do herói e que deseja ardentemente ser um herói – ainda que erre em sua caminhada até lá –, contrastando com os heróis cinzentos glorificados na última década, que são quase anti-heróis; seu vilão é de uma memorável atuação sombria que faz esquecer em definitivo a caricata versão de Jim Carrey no péssimo Batman Forever (onde não se sabe se interpretava o Charada ou o Máscara). E mais do que isso, The Batman é o primeiro filme de herói que ascende a um nível artístico. É um filme sério: é um filme de arte.

Primeiro, tivemos o Joker de Todd Phillips, que inaugurou este patamar de filmes de arte baseados em quadrinhos; agora, é elevado o filme de herói ao patamar da arte; patamar este que as enormidades de efeitos gráficos dos filmes da Marvel, tão cheios de si mas tão vazios, reduzidos à galhofas e/ou piadas indecentes, caça-níqueis, nunca conseguiria atingir, e cuja “consolação” foi mal acostumar, alienar e degenerar toda uma geração que foi ao cinema assistir seus filmes.

Hoje, a Academia do Oscar criou uma categoria de melhor filme por votação pelo Twitter – o que é, honestamente, o cúmulo do ridículo. Premiar qualquer biboca em formato de vídeo pelo único critério de “ter mais fãs” constitui, por parte da Academia, um verdadeiro desprezo e insulto à sétima arte. É uma oficialização do que já fazem há alguns anos, com critérios duvidosos de uma pseudojustiça social (a mesma que, a certo momento de raiva, a ladra Selina Kyle tenta inculcar no Morcego), “diversidade” e “inclusividade”, com as suas cotas sexuais, raciais ou mesmo etnogeográficas.

Da mesma forma que Joker não precisou disso para ganhar os seus merecidos prêmios, The Batman certamente não precisará; pois são ambos filmes de arte, o que sempre foi tradicional premiar, desde que cumpridas as devidas competências – e o filme dirigido por Matt Reeves sem dúvidas as cumpre!

Do começo ao fim é um filme. Um filme de verdade. É o melhor filme do Batman já feito e, muito provavelmente, o melhor filme de herói já feito. A película conta com um roteiro de primeira classe e verdadeiramente baseado nos quadrinhos (o que é uma raridade!), com inspirações no cinema noir clássico e no thriller psicológico, sem o abuso de reviravoltas que satura o cinema nos últimos anos e sem as desnecessárias “inovações” tão queridas atualmente. Em The Batman, Matt Reeves dirige com excelência enquanto Robert Pattinson nos entrega o Batman definitivo, e o espectador também é brindado com atuações memorabilíssimas de Paul Dano como Charada e Colin Farrell como o Pinguim, e com atuações boas e sólidas de Jeffrey White como James Gordon e John Turturro como Carmine Falcone, Zoë Kravitz como Selina Kyle e Andy Serkis como Alfred Pennyworth.

The Batman é um filme de arte.