domingo, 31 de dezembro de 2023

Crônica: Opinião impopular de um homem [muito] chato


Véspera de Ano Novo (c. 1876), litografia americana.

João Medeiros

É verdade que eu não gosto das comemorações de ano novo, isto todos já cansaram de saber, mas ao longo deste ano adquiri um novo olhar sobre o significado deste festejo. O desgosto pelas comemorações em geral permanece, mas não mais pela festa em si mesma, que ganhou para mim um significado antes inexistente. O argumento chestertoniano de que o objetivo do ano novo [...] é que tenhamos uma alma nova” (cf. CHESTERTON, January One, 1904)  finalmente me convenceu.

Ordinariamente, as comemorações possuem uma barulheira miserável e os piores ruídos para os ouvidos. Tudo produzido no quinto dos infernos, com toda a certeza. O meu desgosto de tais comemorações advém, de modo geral, de meu desprezo pelo barulho e pela baderna; no fundo, de meu desprezo da modernidade neopagã. Em todas estas comemorações urbanas, permaneço com Figueiredo, o último dos presidentes militares: prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo.

Entretanto, Deus dispôs o tempo com tal ordem que o objetivo da comemoração de um novo ano é o de que sejamos simbolicamente lembrados com certa periodicidade, pelo completar de cada translação em torno do sol, da necessidade do despir do homem velho e pecaminoso a fim de que sejamos revestidos do homem novo, redimido pela graça de Deus.

E assim revestidos do homem novo, a comemoração em família e/ou com bons amigos, vem também a redimir o comemorar deste festejo, e trazer uma boa razão para comemorá-lo em meio à multidão de ruindades ao nosso redor. Pois, afinal, estar em boa companhia é sempre bom, e nada como comemorar cristãmente com verdadeira alegria, dando graças pelas felicidade e também pelas infelicidades (cf. Jó II, 12) que se passaram.

Longe do caos urbano e distante do barulho de fogos ou de dejetos auditivos, subsistem as excelentíssimas piadas ruins, as boas companhias, e a esperança contra toda a esperança ancorada em Jesus Cristo, Ele que "renova todas as coisas" (cf. Ap XXI, 5) e que se basta e permanece enquanto todo o resto passa, incluindo o tempo que se finda no limiar de cada ano.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Crônica: Lembranças dos tempos de escola


Escola SESI Cambona, c. 2010.

João Medeiros

É impressionante a marca que algumas pessoas ou acontecimentos podem deixar em nossas vidas, a ponto de haver memórias detalhadas ainda que não se pense em tais coisas por décadas.

Apesar de tudo isso parecer hoje tão distante neste novo mundo tecnosocial em que vivemos, com seu turbilhão de informações, entre 2010 e 2012, quando estudava no SESI da Cambona, fui aluno de um professor de matemática de nome Abelardo. Baixinho e gordinho, era notável pelo seu humor e mais ainda por seu temperamento, curto como seus aproximados 1,65m de altura; temperamento que nos divertia pela famosa resposta exclamativa quase como que um bordão: "meu querido!". Ao pensar nisso, consigo até mesmo ouvir sua voz e a entonação de bronca que tinha para com os alunos, que às vezes faziam algo de errado propositalmente somente para ouvi-lo frasear seu icônico chavão.

Em 2010, no 6° ano, fui reprovado na segunda prova bimestral do ano: tirei 6.25, mas precisava de uma nota mínima 7 para a aprovação. Foi a minha primeira vez numa recuperação escolar – mas infelizmente não foi a última. Ainda me recordo claramente do terror que sentia temendo um futuro castigo em caso de não conseguir recuperar a nota, o dia da prova foi uma terça-feira junina se bem me lembro. Fiz tudo certinho nas primeiras sete questões, deixei a oitava por último por julgá-la a mais difícil das dez, e voltei minha artilharia mental à nona e à décima questões; ao completá-las, retornei à oitava na minha finita luta contra o relógio analógico que ficava acima da entrada da sala e me aturdia.

Era uma sala branca retangular de azulejos xadrez divididos entre o branco e o azul marinho à meia altura da parede, quatro ventiladores de teto e quatro fileiras de carteiras; eu estava por primeiro da segunda fileira a contar da esquerda para a direita. Contando comigo, havia cerca de 6 alunos restando quando, de duas carteiras atrás da minha, uma mão pairou no meu ombro direito: olhei para trás e era um colega em busca de "tirar dúvidas", e eu não sabia bem como reagir, pois francamente nunca havia passado por uma situação daquelas antes.

Quem aplicava a prova era o astuto e não menos famoso professor de ciências Walber Aleluia​​, notável pelo seu sobrenome distinto e carisma com os alunos das turmas do 9° ano, com quem sempre realizava projetos. Ele estava ocupado com alguma leitura para o laboratório em seu birô, mas ouviu o cochicho do colega que me falava e que tentava colar da minha prova, e confiscou os exames de ambos. "É o meu fim! Minha prova será anulada", pensava, "estou lascado! O cinto de mainha vai queimar minha espinha". Sensação ingrata.

Cheguei em casa por volta das 10h40min ou 11h, depois de uns 20 minutos no ônibus da linha 055/Chã Nova - Centro (via Chã da Jaqueira), e, cheio de vergonha, fui logo desembuchando a verdade a fim de apelar à piedade materna. Minha mãe me repreendeu, mas disse que esperaria o resultado. Para a minha fortuna e boa sorte do meu couro, o professor Walber não anulou minha prova inteira, mas somente aquela questão 8 que estava prestes a concluir. Fui então aprovado naquele bimestre com nota 9, recuperado com sucesso, e me livrei de uma surra quase certa. Nunca fui bom com os números, mas depois daquela experiência tão terrível, viveria o resto daquele ano e do seguinte em diligência matemática máxima conforme podia, sempre a contar com o ensino e o auxílio do professor Abelardo para o meu aprendizado.

Ainda que houvesse deixado o professor Abelardo para trás em 2013, sempre me cumprimentava com alegria ao me encontrar nos corredores ou rampas da escola, não raro com sua mochila de ombros abarrotada de coisas, mas curiosamente carregada em uma das mãos. Era uma figura ímpar.

Deus é bom e providente, toda esta boa história me veio em mente ao passar pela Av. Abelardo Lima, na Gruta de Lourdes, o que me remeteu ao meu antigo professor, verdadeiro mestre de sua arte e transmissor de seu conhecimento. Não sei como o professor Abelardo se encontra hoje, se está bem ou mesmo vivo, tendo em vista sua idade relativamente avançada; mas espero sinceramente que esteja bem e sob os cuidados de Deus e da Virgem Dolorosíssima. Era um verdadeiro professor em sentido estrito do termo, rigoroso no ensino mas muito solícito extraclasse, grande de coração; e foi o melhor professor de matemática que tive na vida.

quinta-feira, 3 de março de 2022

Crítica: A arte entre os heróis em "The Batman" (2022)

The Batman tem Robert Pattinson como seu protagonista.

João Medeiros

Assisti ao novo filme do Morcego. Sem rodeios, irei direto ao ponto: The Batman é um filme de arte. Todos os atores fizeram um trabalho espetacular, mas gostaria de destacar o diretor e roteirista Matt Reeves e congratulá-lo, e aos demais, e tratar aqui especificamente sobre os papéis de Robert Pattinson e Paul Dano, respectivamente o protagonista e o antagonista do filme. Eles não só surpreenderam, e muito, as minhas expectativas, mas a obliteraram e dizimaram por inteiro. Foi tudo melhor e muito mais do que eu esperava.

Estamos diante da encarnação mais visceral do Homem-Morcego já feita até o presente. Mas se engana quem pensa que o caráter visceral da película fica restrito às cenas de ação. Visceral é a palavra que caracteriza The Batman em todas as áreas possíveis. Pattinson apresenta um Bruce Wayne jovem, algo fragilizado, obcecado com as consequências do passado familiar e os efeitos colaterais delas, porém paradoxalmente estoico, e que carrega tudo consigo quando veste a máscara e põe a capa sobre si, a cobrir suas cicatrizes internas e externas, e como que a esconder o peso do mundo que carrega em seus ombros. Em seu Year Two como Batman, Bruce Wayne encontra-se sempre em lutas consigo e pelos outros, perambulando entre o vigilante que é, a Vingança, e o herói que almeja ser, sinal de uma esperançosa justiça.

E a esse Bruce Wayne ascético, dissoluto, introspectivo e recluso, ainda confuso com quem é e por que luta, é que Pattinson dá vida de forma brilhante e melancólica em sua atuação sempre visceral e obstinada, que vai até o fim em cada detalhe e em tudo o que faz. Não é o famoso playboy a que todos estamos acostumados ver nos cinemas, mas o outro lado nunca revelado nas telas: um Bruce Wayne recluso que faz somente o mínimo necessário para manter as aparências enquanto herdeiro da família Wayne. Mas mesmo que tenha menos tempo de tela, é Bruce Wayne quem circunda o Batman e quem o norteia com sua vendetta, e só depois dá-se conta disso e dos problemas que tal comportamento lhe inflige ao ver a consequência de seus atos; e percebe então da necessidade da justa medida, do equilíbrio necessário, de um princípio novo e bom que norteie o Homem-Morcego a sair daquele vigilantismo de certo sabor niilista.

Em Robert Pattinson, temos um Bruce Wayne em aprendizado para um Batman em aprendizado, em renovação de ideais. O Batman é a noite, é a sombra; e, na noite, é a justiça, ou a esperança dela; e nada está mais distante da justiça que o egoísmo da vingança. A cada vez que, na noite, o sinal do morcego brilha no céu, o Batman torna-se onipresente. Não fisicamente, isto é impossível. A sua presença está em sua ausência, pois pode estar em qualquer lugar da escuridão de Gotham. É a onipresença do temor da justiça visado pelo nosso herói.

Numa sociedade repleta de insanidade, a escuridão das dúvidas de Bruce Wayne cede seu lugar à luminosidade das certezas, e o Batman, como a própria noite, faz a sociedade iniciar seu trânsito para o amanhecer, para a luz. É somente quando consegue ordenar-se a si que o Homem-Morcego consegue trazer alguma ordem ao caótico mundo em que vive. É somente quando enxerga o bem de forma plena e sob as lentes certas que ele detesta verdadeiramente o mal, e age não só para erradicá-lo como para ser modelo do que é bom.

Em sua biografia sobre São Tomás, Chesterton diz que “um santo pode ser feito de todo tipo de homem”; de igual forma, um herói pode ser feito de todo tipo de homem, mesmo daquele que se encontra perdido, e, para o homem ordinário, nada é tão heroico quanto confrontar-se e aos próprios medos e vícios por amor e em ordem ao bem, à verdade e a Deus. Como certa vez ouvi de um velho professor, a santidade é o maior dos atos de heroísmo. E mesmo alguém cheio de feridas como Bruce Wayne, ainda que não seja um santo, poderia sê-lo, pois quem busca por renovação de si e encontra Cristo, Nele se acha renovado em plenitude, pois o Redentor é quem faz nova todas as coisas.

Já Paul Dano, o ator que interpreta o Charada, chegou-me ao conhecimento como um completo desconhecido, e do qual só soube o nome ao ver os créditos da película; e que me surpreendeu sobremaneira. Seu Charada é apresentado como um completo lunático, louco, um sociopático psicopata autenticamente maníaco e insano. Reeves faz uma abordagem simples, como que um feijão com arroz muitíssimo bem temperado pela absurdamente convincente e visceral atuação de Paul Dano, claramente inspirado em assassinos em série do mundo real – e, no cinematográfico, sobe ao nível seleto de um Le Chiffre (Casino Royale), de Mads Mikkelsen, ou de um Scorpio (Dirty Harry), de Andy Robinson. E tudo isto sem as humanizações idióticas tão habituais do antagonista que está tão em voga na moda cinematográfica atual, fruto de uma sociedade decadente que busca normalizar o anormal, vilificar o bem e nobilizar o mal – a exemplo do que fizeram com o Thanos do MCU, na tentativa de justificar o seu repugnante neomalthusianismo.

A atuação de Paul Dano é realmente memorável! Enquanto a charada ainda não foi descoberta, a sua presença se dá pelo enigma do homem mascarado; depois de descoberta, com a sua presença realmente alucinada. É um lunático com motivações distorcidas que são frutos de sua mente doentia e instável, ególatra e narcisista, e o diretor deixa isto claro. O Charada foi a grande surpresa do filme, com tamanha encarnação da personagem antagônica e um Paul Dano completamente doado à interpretação.

Gostaria de ressaltar brevemente as cenas de ação, que foram sublimemente realistas, as melhores já feitas para um filme do Morcego – e que serão um verdadeiro deleite para os fãs da série de jogos Batman Arkham que forem aos cinemas. A fotografia foi um deleite à parte, com o fantástico jogo de luzes variantes entre o preto e cinza escuro e certos tons de fundo de um laranja terroso. Todas as loas sejam dadas a Greig Fraser.

Michael Giacchino surpreende com sua trilha sonora espetacularmente densa, com repetições, descamações, variações e sobreposições sobre peças já existentes ou por ele compostas, e que foram esmiuçadas e tolhidas como uma cana-de-açúcar até produzir o último insumo e não sobrar nada, pois foi completa para o todo da obra. É simplesmente de tirar o fôlego! Incluindo a inserção do singelíssimo “Ave Maria” de Schubert – peça que figura entre as minhas favoritas – e sua repetição menor com variações; ou mesmo com o grunge “Something in the Way”, do Nirvana, que espelha em si os percalços da trama.

The Batman supera com muito êxito a trilogia Nolan, incluindo o célebre The Dark Knight, o segundo filme da trilogia, considerado seu melhor, que é marcado pela performance eletrizante de Heath Ledger como Coringa. Temos em The Batman um herói que é a melhor encarnação do herói e que deseja ardentemente ser um herói – ainda que erre em sua caminhada até lá –, contrastando com os heróis cinzentos glorificados na última década, que são quase anti-heróis; seu vilão é de uma memorável atuação sombria que faz esquecer em definitivo a caricata versão de Jim Carrey no péssimo Batman Forever (onde não se sabe se interpretava o Charada ou o Máscara). E mais do que isso, The Batman é o primeiro filme de herói que ascende a um nível artístico. É um filme sério: é um filme de arte.

Primeiro, tivemos o Joker de Todd Phillips, que inaugurou este patamar de filmes de arte baseados em quadrinhos; agora, é elevado o filme de herói ao patamar da arte; patamar este que as enormidades de efeitos gráficos dos filmes da Marvel, tão cheios de si mas tão vazios, reduzidos à galhofas e/ou piadas indecentes, caça-níqueis, nunca conseguiria atingir, e cuja “consolação” foi mal acostumar, alienar e degenerar toda uma geração que foi ao cinema assistir seus filmes.

Hoje, a Academia do Oscar criou uma categoria de melhor filme por votação pelo Twitter – o que é, honestamente, o cúmulo do ridículo. Premiar qualquer biboca em formato de vídeo pelo único critério de “ter mais fãs” constitui, por parte da Academia, um verdadeiro desprezo e insulto à sétima arte. É uma oficialização do que já fazem há alguns anos, com critérios duvidosos de uma pseudojustiça social (a mesma que, a certo momento de raiva, a ladra Selina Kyle tenta inculcar no Morcego), “diversidade” e “inclusividade”, com as suas cotas sexuais, raciais ou mesmo etnogeográficas.

Da mesma forma que Joker não precisou disso para ganhar os seus merecidos prêmios, The Batman certamente não precisará; pois são ambos filmes de arte, o que sempre foi tradicional premiar, desde que cumpridas as devidas competências – e o filme dirigido por Matt Reeves sem dúvidas as cumpre!

Do começo ao fim é um filme. Um filme de verdade. É o melhor filme do Batman já feito e, muito provavelmente, o melhor filme de herói já feito. A película conta com um roteiro de primeira classe e verdadeiramente baseado nos quadrinhos (o que é uma raridade!), com inspirações no cinema noir clássico e no thriller psicológico, sem o abuso de reviravoltas que satura o cinema nos últimos anos e sem as desnecessárias “inovações” tão queridas atualmente. Em The Batman, Matt Reeves dirige com excelência enquanto Robert Pattinson nos entrega o Batman definitivo, e o espectador também é brindado com atuações memorabilíssimas de Paul Dano como Charada e Colin Farrell como o Pinguim, e com atuações boas e sólidas de Jeffrey White como James Gordon e John Turturro como Carmine Falcone, Zoë Kravitz como Selina Kyle e Andy Serkis como Alfred Pennyworth.

The Batman é um filme de arte.

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Crônica: Parce, Domine!

João Medeiros

Parce, Domine, parce populo tuo; ne in aeternum irascaris nobis.
(Antífona Parce, Domine)

É desta forma, com um contrito pedido de perdão, que o coral entoa em perfeita melodia gregoriana o arrependimento dos homens durante a Quaresma. O que, talvez, pouco se sabe, é que a antífona quaresmal toma seu título de um versículo veterotestamentário. “Perdoai, ó Senhor, o vosso povo”, clamava um angustiado profeta Joel (Jl II, 17) a implorar o perdão de Deus pelos castigos que recebiam os hebreus, merecidos por seus ouvidos moucos e desobediência ao Altíssimo.

Aproximadamente três milênios depois, os católicos sofrem penas ainda mais duras que os hebreus recém-saídos do exílio babilônico, pois enquanto estes sofreram duras penas físicas e materiais, aqueles sofrem com a maior das penas nesta terra, diretamente no espírito, causada pela ausência dos Sacramentos no venerabilíssimo e antiquíssimo Rito Romano. E não pensem que estamos a tratar dos ritos segundo as reformas realizadas e promulgadas pelo Papa Paulo VI: não nos referimos a fabricações!; com efeito, tratamos do verdadeiro e legítimo Rito Romano conforme fora recebido e nos transmitido pelos apóstolos e seus sucessores, e codificado de forma célebre pelos papas São Gregório Magno e São Pio V.

Desde o Concílio Vaticano II (1962-65), os católicos suportamos fardos antes inimagináveis na vida cristã. Se antes era imaginável que um fiel cristão pudesse sofrer das mais diversas perseguições por inimigos de Cristo e da Igreja, ou mesmo perseguições dentro da Igreja por fidelidade à Verdade ante a membros necrosados que insistem na tentativa de apodrecer os membros saudáveis; hoje, a perseguição não mais se dá com só os fiéis. Não, não mais. A estratégia do Inimigo mudou, e aquele seu ataque explícito ao Deus da Eucaristia que costumava ocorrer somente entre hereges declarados, como os cátaros e os luteranos – todos com claro viés blasfematório ou sacrílego –, há mais de meio século tornou-se uma infelicíssima e condenável normalidade dentro da Igreja Católica. Agora, o Inimigo ataca o que há de mais precioso ao coração católico: Nosso Senhor Jesus Cristo em corpo, sangue, alma e divindade na Sacratíssima Eucaristia.

Para o grande choque de neoconservadores, que ao longo dos quase nove anos de triste reinado do atual Pontífice fizeram possível o impossível imbróglio mental para sustentar a continuação do espetáculo circense de perseguição "morde e assopra", o Papa Francisco realmente desmontou o circo hegeliano montado por seus predecessores. Ou melhor dizendo, concluiu-o. Agora não são meramente as avalanches de entrevistas duvidosas dadas a jornalistas ateus com passaporte vitalício à Casa Santa Marta (afinal, o Palácio Apostólico foi jogado às traças, para não falarmos de Castel Gandolfo, ou melhor, Museu Gandolfo...), mas a Pachamama em um andor sobre os ombros de bispos católicos na Basílica de São Pedro, entronizada no coração da Igreja Universal; e a Declaração de Abu-Dhabi a repetir o falso ensinamento conciliar de que católicos e maometanos adoram o mesmo Deus. É, mais do que tudo, a perseguição que tenta ser (embora jamais será) implacável à Sacrossanta Missa Romana, cuja doutrina é pura, católica e representa tudo o que é combatido por modernistas há quase dois séculos – desde bem antes do desastroso Concílio, e para os que dizem que os tradicionais cremos que a Crise começou ontem: não passam de mentirosos cheios de malícia.

E os neoconservadores dividem-se: os críticos criticam, pois a meia medida de Bento XVI, o seu Summorum Pontificum, é intocável para eles, mas, ao fim, calam-se em nome da “obediência”, a que chamamos subserviência servil – com todo o pleonasmo possível; já os “obedientes” seguem o progressismo que ontem mesmo praguejavam, num contrassenso ilógico verdadeiramente descomunal e irracional. Os primeiros trancafiam suas consciências, os segundos... já a venderam há muito tempo.

Como já dissemos cá neste espaço por diversas vezes, a repetir autores muito melhores e mais competentes: é a Revolução que se divide entre jacobinos e girondinos. Os primeiros a avançam, os segundos asseguram o processo revolucionário já conquistado. Modernistas à esquerda e à direita, progressistas e conservadores. Igualmente liberais, diferindo somente em grau. Ambos a rejeitar a Tradição Católica.

A Traditionis Custodes veio. As responsa ad dubia com respeito a este motu proprio saíram – enquanto a resposta sobre a trágica Amoris Laetitia morre caquética e decadente, a exemplo da hermenêutica da continuidade donde surgiu, engolida pela pseudo-obediência do neoconservadorismo, tão rebelde e revolucionário em sua origem quanto o progressismo: duas cabeças de uma mesma hidra modernista. Enquanto a Missa Romana vai sendo formal e ilicitamente abandonada em favor da missa moderna, que é dita ser “única lex orandi” pelo Sumo Pontífice.

Mas sejamos sinceros: a verdade é que os tradicionais não passamos de mentirosos, soberbos e cismáticos que pouco ou nada rezamos, que dirá ter participação nos grupos paroquiais. Quem sabe se admitíssemos que somos muito santarrões para participar da pastoral de acolhida na nova missa, para “apresentar as oferendas” do fruto e do trabalho humano ao altar-mesa ou tornar-se membro de alguma dessas centenas, quiçá milhares, de comunidades carismáticas. Talvez de alguma tertúlia informativa e humanista do Opus Dei sobre a amizade segundo algum desenho animado de sucesso? Sua missa nova é “bem celebrada”, ad orientem e em latim no Centro Jequitinhonha; e eles também são mais polidos e bem-vestidos, sempre alinhados, como bons advogados e engenheiros que são. Em um círculo de alta sociedade como este, talvez até façamos parte da alta cultura, condiz muito com a nossa soberba. Eureca! É isso! Assim seremos aceitos pelos conselhos presbiterais diocesanos e faremos parte da democracia cristã!

Perdoem-nos pelo devaneio, fomos apanhados distraídos a formar nosso imaginário com uma vida paroquial ativa na Paróquia São Paulo VI...

Antes, muitos cristãos ficavam sem a Santa Missa e os demais Sacramentos, fosse por falta de sacerdotes ou das inovações tecnológicas de transporte, dos trens ao avião, que hoje a todos beneficiam e facilitam o acesso aos lugarejos mais remotos. Hoje, os católicos ficam sem os Sacramentos porque estes lhes são “caridosamente” negados por seus bispos, que os trocaram por Sacramentos que visam conciliar o inconciliável: a catolicidade e o humanismo. Numa “caridade” conciliar, onde há espaço de autoridade para hereges, cismáticos e pagãos, é impossível que sobre qualquer brecha para católicos, cuja palavra para todos esses é “fazei penitência e crede no Evangelho” (Mc I, 15).

Se os bispos modernistas são os traditionis custodes, então os fiéis que eles desampararam ou abandonaram são, muito bem, os captivi modernistarum. As horas passam e o céu se fecha. A apostasia se espalha e a ampulheta se afunila. Diferentemente do que pregam os modernistas à Lammenais e Maritain, o Reino de Cristo já está aqui e é a Igreja, e o Sacrossanto Rei lançará sua condenação àqueles que O negam.

A Timóteo, São Paulo aconselha que se afaste dos frívolos, pois “as palavras dessa gente destroem como a gangrena” (II Tm II, 17). Não adianta, pois, abandonar a guerra pela Cidade de Deus em nome do “diálogo fraterno”, da diplomacia, do “zelo pela casa comum” em prol da “fraternidade universal”; tampouco achar-se em “guerras culturais”, cujo fim é político, desalmado e nada faz exceto por alimentar um ideológico espírito de oportunismo e ativismo, como fazem muitos neoconservadores para enganar os incautos e passar-se por tradicionais. Esta é a necrose espiritual, a gangrena de que fala o santo.

“Nenhum atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras”, diz o Apóstolo dos Gentios (II Tm II, 5). E é isto que os tradicionais devemos fazer: lutar segundo as regras, pregando “oportuna e inoportunamente” a “sã doutrina da salvação” (II Tm IV, 2-3), combater o bom combate, guardar a fé (II Tm IV, 7). Somente quem “se conservar puro e isento dessas doutrinas, será um utensílio nobre, santificado, útil ao seu possuidor, preparado para todo uso benéfico” (II Tm II, 21), e para isso, é preciso coragem face às duras perseguições e enfrentamentos. Tal como São José a guardar corajosamente sua Puríssima Esposa e seu Santíssimo Filho adotivo, Deus ordenou que guardássemos a Fé. Este é o bom combate, cujo galardão é a coroa da justiça. A guerra já foi ganha e a vitória é de Cristo, que já venceu na Cruz, e “se morrermos com ele, com ele viveremos. Se soubermos perseverar, com ele reinaremos. Se, porém, o renegarmos, ele nos renegará” (II Tm II, 11-13) e dirá peremptoriamente “nunca vos conheci. Retirai-vos de mim, operários maus!” (Mt VII, 23).

“Perdoai, Senhor, perdoai o vosso povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações a escarneçam. Porque os povos diriam: onde está o seu Deus?” (Jl II, 17). Por mais que a voz daqueles que são fiéis à Igreja e a Cristo esteja abafada por maus pastores, estejamos certos de que é escutada, como foi a voz do santo profeta. E as nações apóstatas perecerão, os necrosados serão decepados, a herança será plenamente restaurada e Deus se manifestará em toda Sua glória e realeza. Pois Deus escuta a Seus filhos, mesmo que encontrem-se no fundo do abismo, porque “o Bom Pastor expõe a sua vida pelas suas ovelhas” (Jo X, 11). Pois Nossa Senhora é Auxiliadora dos Cristãos e Porto dos Náufragos, e, com o perdão do gracejo, é Mãe, e não madrasta. Basta que peçamos e nos será dado, a entoar o Parce, Domine: “aplaquemos a ira vingadora, choremos diante do Juiz, clamemos com voz suplicante e prostrados digamos todos juntos: perdoai, ó Senhor, o vosso povo!”

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Artigo: A Tradição Católica entre o martelo e a bigorna

João Medeiros

No dia 16 de julho de 2021, os católicos de todo o mundo acordamos aflitos diante da notícia da publicação do novo motu proprio do Papa Francisco, cujo nome, Traditionis Custodes, tinha tudo para ser uma bela notícia. "Guardiões da Tradição", que belo nome! Mas aquilo que aparentava ser bom era somente a ponta de um iceberg a atrapalhar, uma vez mais, o florescimento da Tradição da Igreja – coisa muito recorrente em terras romanas desde o insólito Concílio do aggiornamento.

Em Summorum Pontificum, o Papa Bento XVI teve a oportunidade de fazer uma autêntica paz litúrgica, de revogar as disposições vaticano-segundas e o Novus Ordo, mas recusou fazer isso. Pelo contrário, optou por "liberar" a Missa Romana¹ e a pôs em igual patamar à nova liturgia extremamente problemática e heretizante², que continuou a ser o rito ordinário da Igreja Latina – ou melhor, a tal "forma ordinária" como chamou o papa em sua ficção jurídica, sendo o rito antigo a "forma extraordinária" na tentativa de livrar-se das oposições de bispos mais progressistas.

O Papa Ratzinger, conservador não da Tradição, mas sim do Concílio, escolheu, como bom discípulo da Nouvelle Theólogie, por seguir a maneira da dialética hegeliana em nome de uma falsa paz litúrgica: tese, antítese e síntese. "Aliás, as duas Formas do uso do Rito Romano podem enriquecer-se mutuamente", escreveu o então Pontífice na carta aos bispos anexa a seu motu proprio. A tese sendo o rito genuinamente católico; a antítese sendo o rito fabricado e equivocamente católico; por fim, a síntese, o produto híbrido que viesse a ocorrer desse "contato" entre ambas as liturgias: a "reforma da reforma". Uma faca de dois gumes. No mesmo Summorum Pontificum, Bento XVI afirmara que a Missa Tradicional nunca havia sido ab-rogada.

"O segundo grande acontecimento que ocorreu no começo dos meus anos de Ratisbona foi a publicação do "Missal", de Paulo VI, com a proibição quase total do "Missal" anterior, após uma fase de transição de cerca de seis meses. O facto de, após um período de experiências, que amiúde desfiguraram por completo a liturgia, se passar a ter um texto litúrgico vinculativo, era de saudar como algo seguramente positivo. Mas fiquei estupefacto com a proibição do 'Missal' antigo, dado que nunca na história da liturgia se verificara uma situação semelhante."

— Joseph RATZINGER (Papa Bento XVI). IN: A Minha Vida (Livros do Brasil, 2010, p. 106)

Todavia, contava outras coisas enquanto cardeal, somente a confirmar o que havia dito Paulo VI, o Papa do Novus Ordo, em discurso num consistório secreto de 1976:

"A adoção do novo "Ordo Missae" certamente não é deixada ao critério dos sacerdotes ou dos fiéis: a Instrução de 14 de junho de 1971 previa a celebração da Missa na forma antiga, com a autorização do ordinário, apenas para padres idosos ou enfermos, que oferecem o Sacrifício Divino sine populo. O novo Ordo foi promulgado para substituir o antigo, após madura deliberação, a pedido do Concílio Vaticano II."³

A intenção conciliar era de jogar a Missa Tradicional no oblivion, no esquecimento, no calabouço mais profundo da história, transformando a Missa que santificou a Igreja por milênios em mero prêmio de consolação para padres velhos e doentes demais para aprenderem o rito deformado. Cremos até ser possível afirmar que a intenção de Paulo VI era de acabar com toda a Missa até meados dos anos 90 ou 2000, quando esses padres velhos e doentes já teriam morrido. Mas Paulo VI mesmo, com suas próprias palavras, prova que a argumentação dos neoconservadores e hermeneutas continuístas de todo tipo, a famosa "a missa nunca foi proibida!", não passa de mentira e desonestidade.

Hoje, não mais. Francisco segue somente a linha de seus antecessores: de Paulo VI na Instrução de 14 de Junho de 1971, de João Paulo II em Quattuor Abhinc Annos e Ecclesia Dei Adflicta, de Bento XVI em Summorum Pontificum. O Pontífice simplesmente fechou o cerco hegeliano e acabou com a tal "forma extraordinária": pôs a Missa Católica na ilegalidade e na marginalidade, e tratou aqueles que a celebram e assistem como párias, católicos de segunda classe ou cismáticos. A "forma extraordinária" da ficção jurídica ratzingeriana foi demolida por Francisco com todas as letras: pois o Novus Ordo é "a expressão única da lex orandi do rito romano", como diz em Traditionis Custodes.

Agora é, pois, para o Papa Bergoglio, a hora da síntese, como afirma claramente na carta aos bispos anexa ao seu motu proprio.

"As indicações sobre o modo de proceder nas dioceses são ditadas sobretudo por dois princípios: por um lado, cuidar do bem daqueles que estão enraizados na forma antiga de celebração e precisam de tempo para retornar ao rito romano promulgado por São Paulo VI e São João Paulo II. [...] Ao mesmo tempo, peço-lhes que assegurem que toda liturgia seja celebrada com decoro e fidelidade aos livros litúrgicos promulgados depois do Concílio Vaticano II, sem excentricidades que facilmente degeneram em abusos. A esta fidelidade às prescrições do Missal e aos livros litúrgicos. Seminaristas e novos sacerdotes devem ser formados na fiel observância das prescrições do Missal e dos livros litúrgicos."⁴

Mas não nos enganemos: o Papa Francisco é o atual Papa, não Bento XVI – que renunciou validamente em 2013 –, como querem crer e fazer crer alguns; tampouco a Cátedra Petrina está vazia: o sedevacantismo é um erro gravíssimo!

Não há ruptura doutrinal alguma entre os papas conciliares, como querem fazer crer alguns "continuístas críticos", muito pelo contrário, é a pura e simples continuidade de Francisco e do magistério conciliar: proíbe a Missa Tradicional em nome do Concílio e propõe o hibridismo litúrgico (que Deus nos livre!) do "Novus Ordo bem celebrado" como uma falsa paz litúrgica.

"Mas essa missa dita de São Pio V, como se vê em Écône [Suíça, sede da Fraternidade Sacerdotal São Pio X], se torna o símbolo da condenação do Concílio. Ora, jamais aceitaremos, em nenhuma circunstância, que se condene o Concílio por meio de um símbolo. Se fosse acolhida essa exceção, o Concílio inteiro arriscaria vacilar. E consequentemente a autoridade apostólica do Concílio". 

— PAULO VI apud GUITTON. IN: GUITTON, Jean. Paolo VI Segreto. 4ª edição. Milano: San Paolo, 2002, pp. 144-145. Título original Paul VI Secret, Desclée de Brouwer, Paris.

Jean Guitton era amigo próximo e confidente de Paulo VI, e relatou em seu livro Paulo VI Secreto o que disse o papa em resposta às suas proposições, entre elas, a de autorização da Missa Romana, que citamos acima.

Na mentalidade conciliar, retomar a Missa Tradicional é condenar o Concílio. E isto não está errado: a Missa Tradicional, Romana, é a celebração católica, a adoração do Deus Trino e Uno; a Missa do Concílio Vaticano II é a celebração ambígua, católica por equívoco, humanista, onde o homem é posto no centro porque, como disse Paulo VI em 7 de dezembro de 1965, no discurso final do Concílio: "Vós, humanistas do nosso tempo, que negais as verdades transcendentes, dai ao Concílio ao menos este louvor e reconhecei este nosso humanismo novo: também nós —  e nós mais do que ninguém somos cultores do homem".

"Porque “as celebrações litúrgicas não são atos privados, mas sim da Igreja, que é o sacramento da unidade ”, devem realizar-se em comunhão com a Igreja. O Concílio Vaticano II, ao mesmo tempo que reafirmou os laços externos de incorporação na Igreja - a profissão de fé, os sacramentos, de comunhão - afirmou com Santo Agostinho que permanecer na Igreja não só “com o corpo”, mas também “com o coração” é uma condição para a salvação." (FRANCISCO, Traditionis Custodes, 2021)

É curioso que tais palavras venham do Papa do Sínodo da Amazônia e da Declaração de Abu Dhabi, quando ele mesmo em declarações diversas e o inteiro magistério conciliar, com seus "santos", evidenciam fartamente o exato oposto.

"Mas o desígnio da salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há-de julgar os homens no último dia." (Constituição dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja, 1964)

"Também não poucas acções sagradas da religião cristã são celebradas entre os nossos irmãos separados. Por vários modos, conforme a condição de cada Igreja ou Comunidade, estas acções podem realmente produzir a vida da graça. Devem mesmo ser tidas como aptas para abrir a porta à comunhão da salvação. Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja católica." (Decreto Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo, 1964)

"A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões [pagãs, hinduísmo e budismo] existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, «caminho, verdade e vida» (Jo. 14, 6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas." (Declaração Nostra Aetate sobre a Igreja e as religiões não-cristãs, 1965)

"Descobre-se no diálogo como são diversas as vias que levam à luz da fé, mas como apesar disso é possível fazê-las convergir para o mesmo fim. Ainda que sejam divergentes, podem tornar-se complementares, levando o nosso raciocínio para fora das sendas comuns e obrigando-o a aprofundar as investigações e a renovar os modos de expressão. [...] Mas quais as formas com que apresentaremos o diálogo da salvação? São múltiplas as formas do diálogo da salvação. Obedece a exigências ensinadas pela experiência, escolhe os meios convenientes, não se prende a vãos apriorismos nem se fixa em expressões imóveis, quando estas tenham perdido o poder de interessar e mover os homens. [...] A fé é dom de Deus, e só Deus marca no mundo os caminhos e as horas da salvação." (PAULO VI, Ecclesiam Suam, 1964)

"Porque, pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. [...] Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimensão. Não se trata do homem « abstracto », mas sim real: do homem « concreto », « histórico ». Trata-se de « cada » homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério." (JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis, 1979)

"Se para todas as Comunidades cristãs os mártires são a prova do poder da graça, estes contudo não são os únicos que testemunham tal poder. Embora de modo invisível, a comunhão ainda não plena das nossas comunidades está, na verdade, solidamente cimentada na plena comunhão dos santos, isto é, daqueles que, no termo de uma existência fiel à graça, estão na comunhão de Cristo glorioso. Estes santos provêm de todas as Igrejas e Comunidades eclesiais, que lhes abriram a entrada na comunhão da salvação." (JOÃO PAULO II, Ut Unum Sint, 1995)

Então por que, diante disso tudo, seria "permanecer na Igreja 'não só com o corpo', mas também 'com o coração' uma condição para a salvação" na economia salvífica vaticano-segunda? Contudo, não há engano nem ruptura de Francisco com seus antecessores conciliares: é que tal condição vale somente para aqueles integralmente católicos: estes não têm salvação! Enquanto que para os [cismáticos] ortodoxos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, pagãos de qualquer tipo, até mesmo humanistas, "são diversas as vias que levam à luz da fé", pois "a fé é dom de Deus, e só Deus marca no mundo os caminhos e as horas da salvação", "porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério". É a habitual contradição vaticano-segunda da tal "plena comunhão" – mais uma das ficções jurídicas conciliares –, que aos católicos acusa, com ira, "cismáticos!" e aos cismáticos chama de "irmãos na Fé". É que o pecado capital da religião do "novo humanismo" e dos "cultores do homem" é um só: o pecado de não aderir a ela, como fazem os "cismáticos" lefebvristas e todos esses malditos tradicionalistas! "Modernistas de direita" é o que são!

Não há como haver paz ou mesmo enriquecimentos entre um rito que glorifica a Deus Tri-Uno, onde Cristo Sumo Sacerdote imola-se ao Pai através do Espírito Santo, por amor ao Pai e depois a nós, servindo-se do Sacerdote: onde os Mistérios da Fé Católica são perfeita e integralmente expressados; e um rito que glorifica o homem e oferece a Deus, como Caim, o "fruto da terra e do trabalho humano", como expressa o ofertório do Novus Ordo.

O Mistério da Cruz é o que nos sustenta e vivifica, e nós não podemos ceder um único milímetro em defesa dele. É porque amamos a Deus e "a Igreja de Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade" (cf. I Tm III, 15) que nós não podemos mudar ou ceder um milímetro sequer, mas "professar clara e constantemente a doutrina católica, e propagá-la o mais que se puder."⁵. "Não será por estratégias humanas que se ganhará esta guerra, mas pela fidelidade ao depósito da Fé até o preço de nosso sacrifício pessoal e espiritual"⁶, e temos de estar dispostos a pagar este preço, pois Cristo, Deus mesmo encarnado, pagou um muito maior com seu Preciosíssimo Sangue: o preço da nossa redenção. A vitória só nos virá pelo Rosário, nosso remédio; pela Virgem Santíssima que esmaga a cabeça da serpente e a todas as heresias, e nos mantém junto à Paixão de seu Diviníssimo Filho.

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1. A Missa Romana nunca poderia ser proibida, abolida ou ab-rogada, por mais que tenham tentado proibi-la em grave abuso de autoridade: a lei iníqua não é lei e não deve ser seguida.

2. Que tende à heresia ou tangencia o herético.

3. PAULO VI. Discorso del concistoro segreto del Santo Padre Paolo VI per la nomina di venti cardinali. 24 de maio de 1976. Disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/it/speeches/1976/documents/hf_p-vi_spe_19760524_concistoro.html

4. FRANCISCO. Traditionis Custodes. 16 de julho de 2021. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/en/motu_proprio/documents/20210716-motu-proprio-traditionis-custodes.html

5. LEÃO XIII. Sapientiae Christianae. 10 de janeiro de 1890. Disponível em: https://www.institutojacksondefigueiredo.org/documentos-da-igreja/carta-enciclica-sapientiae-christianae

6. YAÑEZ, Miguel Ángel. Francisco não se equivoca. 12 de julho de 2021. Disponível em: https://www.estudostomistas.com.br/2021/07/francisco-nao-se-equivoca.html

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Artigo: Doutrina, instrução e ação católica


"Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as hostes espirituais do mal nos ares celestes. Tomai, portanto, a armadura de Deus, para que possais resistir nos dias maus e manter-vos inabaláveis no cumprimento do vosso dever. Ficai alerta, à cintura cingidos com a verdade, o corpo vestido com a couraça da justiça, e os pés calçados de prontidão para anunciar o Evangelho da paz. Sobretudo, embraçai o escudo da Fé, com que possais apagar todos os dardos inflamados do Maligno."
— São Paulo aos Efésios VI, 11-16
No último capítulo da epístola aos Efésios, o Apóstolo dos Gentios, já prisioneiro dos romanos, dirige valiosas palavras aos cristãos de Éfeso, na costa jônica hoje pertencente aos turcos. São Paulo oferece conselhos práticos e precisos ao povo de Éfeso, conselhos estes que poderiam muito bem ser resumidos em algumas poucas palavras do próprio Verbo Divino Encarnado, "buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça" (Mt VI, 33): ao reinar de Deus sobre si e em crescimento na vida da Graça e em virtudes, tudo mais é acrescentado, incluso a força advinda da graça santificante de Deus para o combate às ciladas demoníacas e ao pecado. As palavras do Apóstolo são norteantes nestes tempos nebulosos e de obscuridade não só no mundo, mas também dentro da Igreja - que foi banhada pelo mundo no insólito Concílio.
"Na verdade, o bem-aventurado Apóstolo Paulo exorta-nos, com instância, a guardarmos a fé que, uma vez por todas, foi confiada aos Santos. Escreve, pois, a Timóteo que guarde o bom depósito, porque instariam tempos perigosos, durante os quais haviam de erguer-se, na Igreja de Deus, homens maus e sedutores. Valendo-se de tal cooperação, o ardiloso tentador tudo faria por induzir os ânimos incautos em erros contrários à verdade do Evangelho."
— CLEMENTE XIII, In Dominico Agro, 1761
Em tempos como este, novas gerações de católicos - reconheçamos que com muita boa vontade e ânimo de espírito - parecem ter acordado de um coma letárgico que por décadas acometeu os católicos de todo o orbe, salvo por raras e honorabilíssimas exceções como Dom Marcel Lefebvre e Dom Castro Mayer, Gustavo Corção e Orlando Fedeli, Michael Davies e Walter Matt e um pequeno punhado de outros; mas em tamanho ímpeto, por vezes descontrolado, para colocar as coisas em ordem, atropelam a própria ordem daquilo que desejam restabelecer, até mesmo dispostos a funestamente cortejar as técnicas da Revolução.

Relembramos que nos referimos à Revolução não como em algum de seus capítulos, como a Protestante ou a Francesa, mas àquela do non serviam luciferino que antecede, inspira e engloba as revoluções dos homens. Desta mesma Revolução, que desviou muitos homens da Cidade de Deus, querem católicos, com boa vontade e grande ignorância - que é culpável pela possibilidade de aprender a reta doutrina -, servir-se de suas estratégias, como as táticas traiçoeiras de Gramsci ou Maquiável; ou ainda empreender uma revolução "às avessas, inversa e com os valores corretos", como que querer chegar ao Céu pelo Inferno, empreitada evidentemente absurda e de realização impossível.
"Onde não for meio-dia e não houver luz tão clara, que se distinga perfeitamente a verdade, fácil será que por ela se tome uma falsa doutrina, na aparência de verdadeira. Na obscuridade, dificilmente se logra distinguir uma da outra."
— CLEMENTE XIII, In Dominico Agro, 1761
Os ensinamentos apostólicos da Igreja permanecem em sua inteireza como um grande tesouro disponível para todos que o procurarem, e neles devemos os católicos buscar a boa instrução na Fé da Igreja. Os Romanos Pontífices reiteradamente alertam há séculos dos graves perigos que a falta de instrução na Fé podem levar o homem a cair. A respeito disso, já alertava o Papa Clemente XIII há quase três séculos que "o inimigo do gênero humano poderia espalhar cizânia de permeio, enquanto os obreiros dormissem" para haver "mais erva [...] para queimar ao fogo", e isto se daria precisamente pela falta de instrução de toda a doutrina necessária aos fiéis, instrução esta realizada "de maneira absolutamente livre de qualquer erro" (CLEMENTE XIII, In Dominico Agro, 1761).
"Uma vez que da ignorância da religião procedem tantos e tão graves danos, e que, por outro lado, são tão grandes a necessidade e a utilidade da formação religiosa, pois em vão seria esperar que alguém pudesse cumprir as obrigações de cristão sem as conhecer, convém averiguar agora a quem compete preservar as almas daquela perniciosa ignorância e instrui-las em ciência tão indispensável."
— PIO X, Acerbo Nimis, 1905
É mister e mais que salutar, mas de legítima urgência, que os católicos sejamos educados na Sã Doutrina, "a doutrina que Jesus Cristo Nosso Senhor nos ensinou, para nos mostrar o caminho da salvação." (PIO X, Catecismo Maior, 4), e a recebamos e aprendamos da Santa Igreja Católica (idem, ibidem, 7), que em seu Sagrado Magistério e Santa Tradição possui uma miríade de ensinamentos verdadeiramente ricos para a alma cristã. É a urgência de que fala Leão XIII no trato dos deveres fundamentais do católico, em reforço ao ensinamento de seus Predecessores, ao salientar que deve ser "o primeiro dever de cada um [...] conservar a fé profundamente arraigada em sua alma, livrando-se de todos os perigos e [...] mantendo-se armado contra falácias e sofismas.". "Ficai alerta, [...] cingidos com a verdade", diz São Paulo, em sucessão apostólica de ensinamentos magistralmente repetido noutras palavras pelo Papa do Rosário, que continua a aconselhar que "a fim de melhor manter a integridade dessa virtude, [...] se aplique bem ao estudo da doutrina cristã e faça que sua alma se embeba, o mais possível, das verdades da fé acessíveis à razão." (LEÃO XIII, Sapientiae Christianae, 1890): a boa instrução na Sagrada Doutrina é terminantemente necessária para a salvação.
"Afirmamos que a maior parte dos condenados às penas eternas padece sua perpétua desgraça por ignorar os Mistérios da Fé, que necessariamente se devem saber e crer para que alguém se conte entre os eleitos"
— BENTO XIV, Instit. 27, 18
É também na boa instrução doutrinal que deve ser realizada a ação católica de anunciar o Evangelho da paz. A ação católica é como que a matéria que tomou sua forma pela Doutrina da Igreja, que constitui sua alma. Uma ação que quer ser católica, mas que não corresponde à esta forma, é cadavérica, como um corpo que morre e tem sua alma separada dele. A compreensão correta da reta doutrina é o primeiro passo necessário à toda iniciativa, seja de cunho individual ou coletiva, pois a ação católica e a Doutrina da Igreja são intrínseca e impreterivelmente unas e indivisíveis.

Longe de nós a conclusão de que somente o conhecimento da reta doutrina é suficiente para impedir a coexistência de comportamentos reprováveis e das más inclinações da natureza humana manchada pela cicatriz do pecado original. Mas com São Pio X, entendemos que "quando ao espírito envolvem as espessas trevas da ignorância, nem a vontade pode ser reta, nem sãos os costumes", pois "aquele que caminha de olhos abertos poderá afastar-se [...] do rumo reto e seguro; mas o cego está em perigo certo de perder-se" (PIO X, Acerbo Nimis, 1905).
"A ação católica [...], na medida em que se propõe a restaurar todas as coisas em Cristo, constitui um verdadeiro apostolado para a honra e glória do próprio Cristo. Para bem cumpri-lo, é preciso que se tenha a graça divina, e esta não se dá ao apóstolo que não estiver unido a Cristo. Somente quando tivermos formado em nós Jesus Cristo é que podemos mais facilmente comunicá-Lo às famílias e à sociedade. E por isso, todos aqueles que são chamados a dirigir ou que se consagram à promover o movimento católico, devem ser católicos à toda prova, convictos de sua fé, solidamente instruídos nos assuntos religiosos, sinceramente obedientes à Igreja, e especialmente à suprema Sé Apostólica e ao Vigário de Jesus Cristo sobre a terra; [devem ser pessoas] de piedade verdadeira, de varonil virtude, íntegras nos costumes e de uma vida de tal modo intemerata, que elas sirvam a todos de eficaz exemplo."
— PIO X, Il Fermo Proposito, 1905
Na luta para se restabelecer a ordem das coisas, o primeiro dever é justamente ordenar-se a si mesmo ao Altíssimo, pois "Nosso Senhor é a forma: nós precisamos ser remodelados por ela." (SHEEN, Fulton John. A Cruz, Vitória sobre os Vícios. São Paulo: Molokai, 2018, p. 89). Querer restaurar o Reinado de Cristo na nação sem antes fazê-Lo reinar sobre si é vaidade. Quando a ação exterior toma primazia sobre a vida interior, os frutos que dela sairão serão puramente superficiais, e depois, a ruína, porque é uma casa construída sobre a areia. A vida interior é a alma de todo apostolado. E esta mesma ordem se dá com os apostolados, que devem em primeiro lugar buscar o bom conhecimento da Sã Doutrina e uma vida interior bem e retamente edificada, para depois se tomar as ações necessárias com base na primeira, nunca o contrário, pois a pastoral não substitui a Doutrina, mas a pressupõe. Como diz a sabedoria popular, não se põe o carro na frente dos bois.

Com efeito, é desta maneira que o heroico brado "Viva Cristo Rei!" será inteiro, com o conhecimento e adesão irrestrita à Sagrada Doutrina da Igreja de Cristo Nosso Senhor, não só por palavras ou abstrações, mas em atos e casos concretos, uma vez que a Cruz Coroada é para os que praticam a verdade, não para os que falam ou escutam sobre ela.

Nesta guerra incessante que a Igreja Militante está obrigada a manter contra o mundo, a carne e o diabo, "toda a nossa vida é certamente envolvida em uma constante batalha, na qual se trata principalmente da salvação eterna, e nada é mais vergonhoso para um cristão do que faltar aos próprios deveres por covardia." (LEÃO XIII, Inimica Vis, 1892), e para cumprir com estes deveres e combater bem tal batalha, a devida preparação deve ser realizada, visto que para as almas despreparadas "não só será difícil promover o bem aos demais, mas será quase impossível agir com retidão de intenção" (PIO X, Il Fermo Proposito, 1905).

Concretamente, a instrução deve ser buscada através de bons padres - que pela ordenação possuem o múnus da docência -, de boas leituras e de um caminho muito fácil que a Igreja dá-nos a graça do oferecimento chamado Catecismo, instituído primariamente por decreto de Trento e reforçado ocasionalmente pelos Papas. A exemplo, o Catecismo Romano é um exemplar perfeito que compendia toda a doutrina necessária de maneira "absolutamente livre de erro". E a única outra fonte que podemos referenciar para tal instrução - sem de forma alguma dispensar ou negligenciar o estudo do Catecismo - é Santo Tomás de Aquino, o Doutor Comum da Igreja, referenciado sem cessar pela própria Igreja desde Trento, e em tempos mais recentes de maneira mais célebre por Leão XIII (cf. Aeterni Patris), São Pio X (cf. Doctoris Angelici) e Pio XI (cf. Studiorum Ducem).
"Por isso, agora Nós dizemos a todo aquele que deseja a verdade: "ide à Tomás!" e peça-lhe que lhe dê, a partir de seu amplo estoque, o alimento de doutrina substancial com a qual possa nutrir sua alma para a vida eterna."
 — PIO XI, Studiorum Ducem, 1923
Bem preparados e instruídos na Doutrina de Cristo legada ao zelo de sua Igreja, e em grande busca por uma profunda vida na Graça, sob o patrocínio da insigne Mãe de Deus e do Patriarca São José, que os católicos ajamos com a prudência católica - depois de verdadeiramente conhecê-la, para não tomar a prudência mundana como gato por lebre -, com um non possumus incondicional diante do mundo e do diabo, "contra principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso" e tudo o que eles representam; da carne e de suas más inclinações e paixões desordenadas; e sem hesitação ou vínculos quaisquer - todos muitos inferiores ao imenso tesouro da Fé, que deve ser sempre e integralmente defendida - com aqueles que obstinadamente se fazem inimigos de Cristo e de sua Igreja. E assim, prontos para o bom combate, lutemos sempre revestidos da armadura de Deus e embraçados com o escudo da Fé, para que possamos resistir nos dias maus e, a suplicar "insistentemente a Deus para que Ele incline a vontade de todos em direção à honestidade e à verdade" (LEÃO XIII, Diuturnum Illud, 1881), cumpramos sempre com os deveres diante da Cruz.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Crítica: A contemplação de Cristo em Diego Velázquez

Cristo contemplado pela Alma Cristã (1625, óleo sobre tela), de Diego Velázquez
"Em verdade vos declaro: se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos Céus."
— São Mateus XVIII, 3
Diego Velázquez (1599-1660) foi um dos maiores pintores da Christianitas Minor, a Cristandade Menor. Um dos gênios do chamado Século de Ouro Espanhol, de uma geração da estirpe de El Greco, Zurbarán e Murillo, considerado um dos mestres da pintura universal. Uma verdadeira preciosidade é sua pintura mostrada acima, para além de todas as características pictóricas do genial artista espanhol.

Velázquez retrata a contemplação de Cristo pela alma cristã - o que intitula seu quadro -, com a alma retratada como uma criança e o Cristo no açoite de sua Santa e Dolorosa Paixão, precedente à Crucificação. Ocorre ali a concretização de duas coisas estreitamente ligadas ditas pelo Cristo próprio: Quem não se tornar como criança, não entrará no Reino dos Céus (Mt XVIII, 3-4). Logo ao início daquele capítulo evangélico, Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina que devemos nos tornar humildes como crianças, mas mais do que isso: a criança, indica-nos o Pintor, é a representação das bem-aventuranças do Sermão da Montanha (Mt V), concretizada em uma singela personagem.
"Por nada te angusties, nada te perturbe. A Jesus Cristo segue, com grande entrega, e, venha o que vier, nada te espante. [...] Quem a Deus tem, mesmo que passe por momentos difíceis, sendo Deus o seu tesouro, nada lhe falta. Só Deus basta."
— Santa Teresa de Ávila
A criança é bem-aventurada porque tem coração de pobre, é humilde e dela será o Reino dos Céus; porque chora e na Paixão e na Cruz se consola; porque é mansa e, a possuir o Cristo - o Manso -, possui a terra: possui tudo!; porque é misericordiosa e compassiva pelo Justo açoitado, e pela injustiça vista tem fome e sede de justiça, e é saciada pela misericórdia divina; porque é pura, inocente e vê a face de Deus; porque é pacífica e obtém a paz de Cristo no Próprio, ao conseguir sobre si mesma o jugo d'Ele - Pax Christi in Regno Christi, a paz de Cristo no Reino de Cristo -, e pôde, depois do Senhor, ser chamada filha de Deus.

Cristo Crucificado (c. 1632, óleo sobre tela), de Diego Velázquez

A contemplação cristã, mostra-nos Velázquez, está intrinsecamente ligada à Paixão do Senhor - e também à sua morte de Cruz, como demonstra o Pintor em outras de suas obras, uma delas exibida logo acima. É na Paixão e Morte de Cristo que toda vida espiritual deve estar enraizada, como a própria Igreja nos ensina ao fazer do Tríduo Pascal os dias mais importantes de todo o calendário litúrgico.

A criança de Velázquez é verdadeira imitadora de Santa Maria e de São João, o Evangelista Apóstolo, que com Nosso Senhor permaneceram por toda a Via Crucis. Tal como eles, a criança - e sua alma contemplativa - procura estar com o Filho de Deus naqueles momentos mais duros. Seus olhos inocentes acompanham as dores de Cristo, como acompanharam os puríssimos olhos da Mãe das Dores. Tal como a Virgem Dolorosíssima, a criança bem-aventurada do Espanhol adora de maneira perfeitíssima o Cristo açoitado. 

Compatriota de Velázquez, o jurista e filósofo Miguel Ayuso escreveu, em um de seus artigos para a Revista Verbo, que "... a teologia do Reino de Cristo afirma que o mundo não poderá encontrar uma paz verdadeira, fruto e expoente de sua saúde verdadeira que não seja no reconhecimento pleno e voluntário da soberania de Cristo" (AYUSO, Miguel. A perene tentação liberal. Revista Verbo, Madrid, n. 489-490, 2010). A alma cristã só pode ser contemplativa com o jugo soberano do Cristo sobre seu coração e sua vida.

Noutras palavras, o Papa Pio XI afirmou que "que não há paz de Cristo senão no reino de Cristo, e que não há meio mais eficaz para consolidar a paz que a restauração do reino de Cristo" (PIO XI, Ubi Arcano Dei Consilio, 1922). É através da tomada de jugo de Nosso Senhor sobre nós e do recebimento de sua doutrina que encontramos a mansidão e humildade de seu Sagrado Coração, e n'Ele o repouso para as nossas almas (Mt XI, 28-30). E disto organicamente em escalada até atingir todas as esferas da vida, públicas ou privadas, para que Cristo reine sobre tudo e todos.
"Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro. Minha alma está sedenta de vós, e minha carne por vós anseia como a terra árida e sequiosa, sem água. Quero vos contemplar no santuário, para ver vosso poder e vossa glória. Porque vossa graça me é mais preciosa do que a vida, meus lábios entoarão vossos louvores. Assim vos bendirei em toda a minha vida, com minhas mãos erguidas vosso nome adorarei. Minha alma saciada como de fino manjar, com exultante alegria meus lábios vos louvarão. Quando, no leito, me vem vossa lembrança, passo a noite toda pensando em vós. Porque vós sois o meu apoio, exulto de alegria, à sombra de vossas asas. Minha alma está unida a vós, sustenta-me a vossa destra."
Salmo LXII, 2-9
Para que tenhamos viva vida espiritual e plena contemplação, devemos nos tornar como crianças: dóceis à Graça e ao Paráclito a operar em nossas almas para que, no exercício das virtudes, possamos acrescer à vida da alma na vida de Cristo Crucificado. A Cruz é o centro e a vitória da Vida. De maneira muitíssimo sábia e feliz, São Bruno de Colônia disse e seus monges afixaram como lema de sua Ordem dos Cartuxos: stat Crux dum volvitur orbis! - a Cruz permanece enquanto gira o orbe! Nós Vos adoramos, Senhor, e Vos bendizemos, porque pela vossa Santa Cruz remistes o mundo!

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Artigo: O trono da Cruz que tudo comprou


“Irmãos: Damos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de participar da herança dos santos na luz; que nos arrancou do poder das trevas, e nos transferiu para o Reino do Filho do seu amor, em Quem temos, pelo seu sangue, a redenção e o perdão dos pecados. Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação, porque é Nele que tudo foi criado nos Céus e na Terra, – o mundo visível e o invisível, os Tronos e as Dominações, os Principados e as Potestades. Tudo foi criado por Ele e para Ele. Ele é anterior a tudo, e tudo Nele subsiste. É Ele ainda que é a cabeça do corpo da Igreja; o princípio, e o primogênito de entre os mortos, a fim de em tudo ter a primazia, porque aprouve a Deus fazer Nele residir toda a plenitude; e por Ele, que restabeleceu a paz no sangue de sua Cruz, reconciliar tudo o que existe, seja na Terra ou nos Céus, em Jesus Cristo, Nosso Senhor.”
— São Paulo aos Colossenses I, 12-20
Nosso Senhor Jesus Cristo sempre fora aclamado como Rei pela Cristandade, porque assim fora constituído pelo Pai. É o Rei sob cuja a majestade devem ser submetidos todos indivíduos, famílias, cidades, povos e nações. É o Rei único e supremo no céu e sobre a terra, como solenemente proclamou e demonstrou o Papa Pio XI durante o Advento de 1925. A instituição da Festa de Cristo Rei pelo mesmo Papa é a proclamação solene da realeza universal de Cristo, de seu Reinado Social contra a dita outra via da “sã” laicidade e do laicismo, erros largamente difundidos em nosso tempo, mesmo por aqueles que se dizem católicos.
“Com a celebração ânua desta festa hão de relembrar-se, outrossim, os Estados que aos governos e à magistratura incumbe a obrigação, bem assim como aos particulares, de prestar culto público a Cristo e sujeitar-se às suas leis. Lembrar-se-ão também os chefes da sociedade civil do juízo final, quando Cristo acusará aos que o expulsaram da vida pública, e a quantos, com desdém, o desprezaram ou desconheceram; de tamanha afronta há de tomar o Supremo Juiz a mais terrível vingança; seu poder real, com efeito, exige que o Estado se reja totalmente pelos mandamentos de Deus e os princípios cristãos, quer se trate de fazer leis, ou de administrar a justiça, quer da educação intelectual e moral da juventude, que deve respeitar a sã doutrina e a pureza dos costumes.”
 — PIO XI, Quas Primas, 1925
A tal “sã” laicidade é o primeiro passo à cidade dos homens: a negação da realeza de Cristo sobre os homens: é a vida como se Deus não existisse, um indiferentismo maldito ao Rei que conduz à apostasia massiva, a sociedade à desgraça, porque, indiferentes, esquecem que não há outra via para a Jerusalém Celeste, somente Cristo Rei; enquanto o laicismo é o segundo passo: a pura aversão dos homens apóstatas de uma sociedade já desgraçada ao Rei, é a concretização da cidade dos homens. Ambos os passos são parte do projeto de Satanás, que, com seu infame non serviam, foi o primeiro liberal ao lançar-se contra o Rei dos reis. Passos para o inferno.
“Mas há um grande número de homens que, a exemplo de Lúcifer, — de quem são estas palavras criminosas: Não obedecerei, — entendem pelo nome de liberdade o que não é senão pura e absurda licença. Tais são aqueles que pertencem à escola tão espalhada e tão poderosa desses homens que foram tirar o seu nome à palavra liberdade, querendo ser chamados Liberais.”
— LEÃO XIII, Libertas Praestantissimum, 1888
O reinado de Nosso Senhor é primeiramente espiritual, e com Ele a reinar sobre a alma de cada homem, deve reinar também naquilo que é temporal e social, para que tudo favoreça e seja retamente ordenado à salvação das almas. É nisto que consiste a verdadeira liberdade do homem: viver segundo as leis, natural e divina, e segundo a reta razão. Viver segundo a verdade, que é libertadora da obscura escravidão do pecado, do erro e do poder das trevas.
“Numa sociedade de homens, portanto, a liberdade digna deste nome não consiste em fazer tudo o que nos apraz: isso seria uma confusão extrema no Estado, uma perturbação que conduziria à opressão. A liberdade consiste em que, com o auxílio das leis civis, possamos mais facilmente viver segundo as prescrições da lei eterna. E para aqueles que governam, a liberdade não é o poder de mandarem ao acaso e segundo seu bel-prazer: isso seria uma desordem não menos grave e extremamente perigosa para o Estado; mas a força das leis humanas consiste em que elas sejam olhadas como uma derivação da lei eterna e que não há nenhuma das suas prescrições que não seja contida nela como no princípio de todo direito.”
— LEÃO XIII, Libertas Praestantissimum, 1888
Seguindo estas palavras tão verdadeiras do Papa Leão XIII, o grande estadista católico português António de Oliveira Salazar resumiu de maneira clara, simples e direta como deve se dar a relação entre Estado e Igreja: “A Igreja quer salvar todas as almas e pretende que o Estado não a atrapalhe nessa missão.”. Como já escrevemos anteriormente, no instaurar de todas as coisas em Cristo, o Estado e Igreja devem estar unidos - Estado Católico - sem se confundirem e serem distintos sem separação, com o Estado ordenado e submisso à Igreja e às suas leis, prostrado diante de Cristo Rei. A negação da realeza social de Cristo é a edificação da cidade dos homens, e não se pode querer estar na cidade dos homens e na cidade de Deus ao mesmo tempo. Não podemos servir a dois senhores.
“Quanto à Igreja, que o próprio Deus estabeleceu, excluí-la da vida pública, das leis, da educação da juventude, da sociedade doméstica, é um grande e pernicioso erro. Uma sociedade sem religião não pode ser bem regulada; e, mais talvez do que fora mister, já se vê o que vale em si e em suas conseqüências essa pretensa moral civil.”
— LEÃO XIII, Immortale Dei, 1885
Os judeus reconheceram a Realeza de Nosso Senhor para condená-Lo (cf. Jo XIX, 12) e os pagãos para Dele zombar (cf. Jo XIX, 3). O omisso Pôncio Pilatos ordenou que se escrevesse na Santa Cruz “Jesus Nazareno Rei dos Judeus”, o que é correto, mas algo incompleto: Cristo é Rei não somente dos judeus, mas de todos os povos, uma vez que toda a terra está sob sua autoridade; uma vez que adquiriu para si todo o gênero humano através do derramamento de seu Preciosíssimo Sangue na Santa Cruz.
“Este testemunho universal e solene de honra e de piedade é plenamente devido a Jesus Cristo, precisamente porque Rei e Senhor de todas as coisas. Com efeito, o seu império não se estende somente às nações católicas e àqueles que, validamente batizados, pertencem por direito à Igreja (ainda que erros doutrinais os mantenham afastados dela ou dissensões infringiram os vínculos da caridade), mas abraça também todos aqueles que não têm a fé cristã, porque toda a humanidade está realmente sob o poder de Jesus Cristo. Com efeito, o Filho unigênito de Deus Pai tem em comum com Ele a mesma natureza, o “resplendor de Sua glória e expressão do Seu ser” (Hb I, 3), tem necessariamente tudo em comum com o Pai e, portanto, o pleno poder sobre todas as coisas. Esse é o motivo pelo qual o Filho de Deus, pela boca do Profeta, pôde afirmar: “Fui constituído Rei sobre Sião, seu monte santo. O Senhor me disse: Tu és meu Filho; Eu hoje Te gerei. Pede-me e dar-te-ei as nações em herança e para teu domínio os confins da terra” (Sl II, 6-8). Com essas palavras ele declara ter recebido de Deus o poder, não somente sobre toda a Igreja, prefigurada em Sião, mas também sobre todo o resto da terra, até onde se estendem os seus confins. O fundamento desse poder universal é claramente expresso naquelas palavras: “Tu és meu Filho”. Pelo fato de ser o Filho do Rei de todas as coisas, é também herdeiro de Seu poder universal. Por isso o salmista continua com as palavras: “Dar-te-ei as nações em herança”. Semelhantes a esta são as palavras do Apóstolo Paulo: “Constituiu-O herdeiro de todas as coisas” (Hb I, 2).
Deve-se ter presente, sobretudo o que Jesus Cristo, não por meio dos seus Apóstolos e Profetas, mas com as suas próprias palavras afirmou do seu poder. Ao governador romano que Lhe perguntava: “És, portanto, rei?”, Ele respondeu sem hesitação "Dizes bem: eu sou Rei!" (Jo XVIII, 37). A vastidão do seu poder e a amplidão sem limite de seu Reino são claramente confirmadas pelas palavras dirigidas aos Apóstolos: “Foi me dado todo poder nos céus e na terra” (Mt XXVIII, 18). Se a Cristo foi concedido todo  o poder, disso deriva necessariamente que o seu domínio deve ser soberano, absoluto, não submetido a ninguém, de modo que não pode existir outro nem igual nem semelhante. E como esse poder Lhe foi dado, quer no céu quer na terra, devem estar submetidos a Ele o céu e a terra. Com efeito, Ele exerceu esse seu direito próprio e individual quando mandou aos Apóstolos pregar sua doutrina, reunir, por meio do batismo, todos os homens no único corpo da Igreja, e impor leis, as quais ninguém se pode subtrair sem pôr em perigo a própria salvação eterna.
E não é tudo. Cristo não tem poder de mandar somente por direito de nascimento, sendo o Filho unigênito de Deus, mas também por direito adquirido. Com efeito, Ele nos libertou “do poder das trevas” (Cl I, 13) e “deu a Si mesmo como resgate para todos” (I Tm II, 6). Por isso, para Ele não somente os católicos e quantos receberam o batismo, mas também cada um e todos os homens tornaram-se “um povo que Ele adquiriu” (I Pd II, 9). A esse propósito Santo Agostinho observa justamente: “Quereis saber o que Ele adquiriu: Prestai atenção naquilo que deu e entendereis o que comprou. O sangue de Cristo: eis o preço. E o que pode valer tanto? O quê a não ser o mundo inteiro? Para tudo deu tudo”.”
— LEÃO XIII, Annum Sacrum, 1899
Durante os Santos Mistérios, os homens ajoelham-se todos, indistintamente, perante o Cordeiro que foi imolado no altar de Deus: ecce Agnus Dei! – eis o Cordeiro de Deus!; perante o Deus que se fez Homem a ser crucificado. Ecce Homo! – eis o Homem!

A Festa de Cristo Rei proclama com todas as palavras a antecipação no tempo da realeza eterna exercida por Nosso Senhor na glória celeste. O Rei cujo o Reino não terá fim – cujus Regni non erit finis – e que dominará sobre toda a terra, onde todos devem adorá-Lo e servi-Lo (cf. Sl LXXI, 8). E somos sempre convidados pelas palavras de Nosso Senhor ao labor pela expansão de seu Reino: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura.”, convite sempre reforçado pela Santa Igreja.
“Amados irmãos e filhos nossos: o olhar que lançamos convosco sobre os diversos problemas da vida social contemporânea, desde as primeiras luzes do ensinamento do papa Leão XIII, levou-nos a formular um conjunto de observações que formam um programa. Convidamo-vos a que as pondereis, as mediteis bem e vos animeis a cooperar, todos e cada um de vós, na realização do reino de Cristo sobre a terra: “Reino de verdade e de vida; reino de santidade e de graça; reino de justiça, de amor e de paz”; reino que promete o gozo dos bens celestiais, para que fomos criados e que ansiosamente desejamos.
Trata-se da doutrina da Igreja Católica e Apostólica, mãe e mestra de todas as gentes, cuja luz ilumina e abrasa; cuja voz, ao ensinar cheia de sabedoria celestial, pertence a todos os tempos; cuja virtude oferece sempre remédios eficazes, suscetíveis de trazerem solução para as crescentes necessidades dos homens, para as angústias e aflições desta vida.”
— JOÃO XXIII, Mater et Magistra, 1961
Como no Tempo da Paixão anuncia o Hino Vexilla RegisAvançam os estandartes do Rei, fulge o mistério da Cruz, o criador da carne, pela carne, é suspenso no madeiro. [...] Cumpriu-se o canto de Davi, a profecia fiel que anunciou às nações: Deus fez da cruz o seu trono.”. Deus reinou do madeiro da Santa Cruz ao morrer, por amor, para nos salvar, para adquirir nossa liberdade e nosso domínio soberano. Gloriemo-nos, como São Paulo, na Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl VI, 14).

Que “as nações divididas pela ferida do pecado se agreguem sob o seu império santíssimo”, para a realização “do reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, amor e paz” (Colecta e Prefácio de Cristo Rei, Rito Romano Tradicional). Abracemos sem hesitação o Rei da Cruz como fez a Beatíssima Virgem Dolorosa, e entoemos junto da Igreja o Hino de Vésperas da Festa de Cristo Rei:
Nós vos proclamamos, Senhor, o príncipe que domina os séculos, o Rei das nações e dos povos, o Mestre e Guia das almas e dos corações. 
A turba ímpia clama: não queremos que Cristo reine. Nós te proclamamos o Senhor supremo de todas as coisas. 
Ó Cristo, príncipe da Paz, sujeita os corações rebeldes e reúne-os por teu amor ao santo rebanho que governas. 
Rendam-te, pois, os governantes dos povos a vassalagem a que tens direito; venerem-te os juízes e os magistrados, e a arte e as leis sejam a expressão de tua realeza. 
Gloriem-se as coroas brilhantes dos monarcas de se curvarem diante de ti e reduze à obediência do teu cetro brando a nossa pátria e os nossos lares.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Artigo: O homem e o mundo, parte II

Benedictus Dominus, Deus meus, qui docet manus meas ad proelium, digitus meos ad bellum; misericordia mea et refugium meum, susceptor meus et liberator meus; protector meus, et in eo speravi, qui subdis populum meum sub me.
— Salmo CXLIII, 1-2
Conforme o adágio de Santo Agostinho tornado em lema jurídico por São Tomás, lex iniusta non est lex - a lei injusta não é lei. Os católicos temos não só o direito, mas verdadeiro dever de desobedecer as leis injustas e qualquer outra coisa que afronte à Lei de Deus, sem temer as consequências mundanas. Se Deus por nós na Cruz morreu, porque não podemos segui-Lo no exemplo por Ele? O mundo nos odeia. A Sabedoria Encarnada nos afirmou com clareza cristalina, para não deixar nenhuma dúvida: “Sereis odiados de todos por causa de meu nome” (cf. Mt X, 22).

O mundo rejeita o Cristo e seus ensinamentos. E devemos reagir não somente às leis injustas, mas também aos propagandismos das iniquidades e àqueles que buscam a liberdade para o erro, para o que é falso, iníquo e imoral.
“Amemos, pois, e muito a nossa pátria terrena que nos deu a vida mortal: mas amemos ainda mais a Igreja à qual somos devedores da vida imortal da alma, porque é justo preferir os bens da alma aos do corpo, e os deveres para com Deus têm um caráter mais sagrado que os deveres para com os homens. [n. 8]
Casos há efetivamente em que o Estado exige uma coisa do súdito e a Igreja requer outra do cristão, e a causa dessa colisão é porque os chefes políticos ou não reconhecem o poder sagrado da Igreja ou a pretendem avassalar. Daqui as perseguições e as admiráveis cenas de fortaleza cristão. Dois poderes insistem dando ordens contrárias. Obedecer a ambos ao mesmo tempo é impossível: “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt VI, 24), agradar a um é descontentar o outro, mas qual deva ser preferido é coisa em que não cabe a menor dúvida. [n. 10]
Seria crime negar obediência a Deus para dá-la aos homens; seria delito infringir as leis de Jesus Cristo para obedecer aos magistrados, ou violar os direitos da Igreja sob pretexto de guardar as leis de ordem civil. “Importa obedecer mais a Deus do que aos homens” (At 5,29). Essa resposta que outrora costumavam dar Pedro e os demais apóstolos aos magistrados, quando lhes ordenavam coisas ilícitas, devemos repeti-la todos os dias muito resolutamente em circunstâncias iguais. Não há melhor cidadão, quer na paz, quer na guerra, do que o cristão que o é deveras; mas por isso mesmo que o é, deve antes estar resolvido a sofrer tudo e a própria morte, do que desertar a causa de Deus e da Igreja. [n. 11]
A lei não é outra coisa que um ditame da reta razão promulgado pela autoridade legítima para o bem comum. [...] Reta razão não se pode chamar aquela que discordar da verdade e razão divina; e, quanto a bem verdadeiro, certamente não o é o que estiver em contradição com o bem supremo e imutável e por conseguinte torcer e desviar as vontades humanas do amor de Deus. [n. 12]
Em presença dessas iniquidades, seja o primeiro dever de cada um entrar em si e aplicar-se com todo o desvelo a conservar a fé profundamente arraigada em sua alma, livrando-se de todos os perigos e nomeadamente mantendo-se armado contra falácias e sofismas. A fim de melhor manter a integridade dessa virtude, [...] se aplique bem ao estudo da doutrina cristã e faça que sua alma se embeba, o mais possível, das verdades da fé acessíveis à razão. [n. 19]
Nesse enorme e geral delírio de opiniões que vai grassando, o cuidado de proteger a verdade e de extirpar o erro dos entendimentos é missão da Igreja e missão de todo o tempo e de todo o empenho, como que à sua tutela foram confiadas a honra de Deus e a salvação dos homens. Mas quando a necessidade é tanta, já não são somente os prelados que hão de velar pela integridade da fé, uma vez que: “cada um tem obrigação de propalar a todos a sua fé, seja para instruir e animar os outros fiéis, seja para reprimir a audácia dos que não o são” (São Tomás de Aquino, Summa Theol. II-II, q.3, a.2, ad 2). Recuar diante do inimigo, ou calar-se, quando de toda a parte se ergue tanto alarido contra a verdade, é de homem covarde ou de quem vacila no fundamento de sua crença. Qualquer dessas coisas é vergonhosa em si; é injuriosa a Deus; é incompatível com a salvação tanto dos indivíduos, como da sociedade e só é vantajosa aos inimigos da fé, porque nada tanto afoita a audácia dos maus, como a pusilanimidade dos bons. [n. 21]
Acresce que os cristãos nasceram para o combate, e quanto mais bravo ele for, mais certa será com o auxílio de Deus a vitória: “Tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16,33). [n. 22]
A primeira aplicação desse dever é professar clara e constantemente a doutrina católica, e propagá-la o mais que se puder. [n. 23]
Desse modo, nos deveres que nos ligam com Deus e com a Igreja, está, em primeiro lugar, o zelo que cada qual deve trabalhar segundo as suas forças em propagar a doutrina cristã e refutar os erros. [n. 25]”
— LEÃO XIII, Sapientiae Christianae, 1890
O grande Papa Leão XIII, que tanto iluminou a Igreja com suas brilhantes encíclicas em seu longo pontificado, assertivamente declarou com venerável firmeza tudo acima citado (o destacado é nosso). Ressaltamos uma vez mais estas belas palavras: “os cristãos nasceram para o combate”. Nas palavras de Gustavo Corção, pelo Sinal da Santa Cruz nós aprendemos a pedir a Deus que nos livre de nossos inimigos e nos armamos para o bom combate (cf. Permanência, N° 30, ano IV, 03/1971). E a vocação do católico é o combate! É para isto que nascemos, portanto devemos nos revestir da armadura de Deus para servi-lO dedicadamente como verdadeiros servos do Senhor, e não do mundo, da carne ou do Diabo (cf. Ef VI, 10-17). Nascidos para o combate, busquemos o combate, não o conforto mundano. O repouso e conforto do cristão está em Deus, e somente n'Ele há de descansar verdadeiramente. O resto é vão, há de ser consumido pela traça e corroído pelos vermes.

Tal como São Jerônimo, façamos dos inimigos de Deus nossos inimigos pessoais e lutemos! Lutemos contra as iniquidades da maldita Civilização Liberal, que espalha em assalto as suas desgraças liberais, socialistas, marcusianas, revolucionárias; que busca transformar (ou já o fez) a morte de bebês em direito e os verdadeiros direitos, natural e divino, em crimes.

Neste fruto que já nasceu podre da desgraçada e liberal Revolução Francesa, o homem é reduzido de sua dignidade, de sua condição humana: buscam seduzi-lo para torná-lo mero animal que sucumbe em todo instante às paixões. O homem é desumanizado como fruto da peste laica, e hoje colhemos os resultados do que em 1906 já nos dizia São Pio X:
"Finalmente, essa tese [do Estado Laico] inflige graves danos à própria sociedade civil, pois esta não pode prosperar nem durar muito tempo quando não se dá nela o seu lugar à religião, regra suprema e soberana senhora quando se trata dos direitos do homem e dos seus deveres”; repetia de outra maneira as palavras de Leão XIII, que chamava tal separação de “grande e pernicioso erro” (cf. LEÃO XIII, Immortale Dei, 1885)."
— PIO X, Vehementer Nos, 1906
Lutemos pelo Estado Católico e a restauração da Realeza de Nosso Senhor Jesus Cristo em nossos corações, famílias, cidades e nações. Somente em Deus e em seu Reino teremos verdadeira liberdade e paz, conforme o lema de Pio XI: Pax Christi in Regno Christi - A paz de Cristo no Reino de Cristo. Fora dele, somos todos escravos.
“A Igreja, fundada pelo Salvador, é a única para todos os povos e todas as nações. Sob sua cúpula, que levanta seus arcos como o firmamento sobre o universo inteiro, encontram lugar e asilo todos os povos e todas as línguas, e podem desenvolver-se todas as propriedades, qualidades, missões e funções que foram assinadas por Deus Criador e Salvador aos indivíduos e à sociedade humana.”
— PIO XI, Mit Brennender Sorge, 1937
A sociedade moderna, aprovando e incentivando erros, iniquidades, depravações, desordens, caos, encaminha-se para a destruição que lhe é devida por buscar sediar o Anticristo, mas, infelizmente, arrasta consigo muitas almas para o inferno. Pois lutemos contra ela o bom combate, sempre buscando as virtudes e a perfeição cristã. O homem é plenamente homem à medida que é cristão e está em habitual e crescente comunhão com a Graça, do contrário, perde sua humanidade enquanto afasta-se de Cristo. E quanto mais está unido a Cristo e sua Graça, mais há de afrontar o mundo, especialmente com seu exemplo diariamente moldado e esculpido pela ação da Graça Santificante.
“Eles se revoltam insidiosamente contra vós, perfidamente se insurgem vossos inimigos. Pois não hei de odiar, Senhor, aos que vos odeiam? Aos que se levantam contra vós, não hei de abominá-los? Eu os odeio com ódio perfeito, eu os tenho em conta de meus próprios inimigos.”
 — Salmo CXXXVIII, 20-22
Como escreveu o salmista, odiemos os inimigos da Igreja e de Deus com ódio perfeito de uma caridade ardente fundada sobre o mais sólido amor à Verdade, para que como o Santo Profeta Elias, ao sermos questionados pelo Senhor com “O que fazes aqui?”, a resposta possa surgir na língua sem hesitação alguma por ter sido impregnada no mais íntimo do âmago da alma de cada católico: “Zelo zelatus sum pro Dominum Deo Exercituum. - Consumo-me de zelo pelo Senhor, Deus dos Exércitos.” (cf. I Reis XIX, 9-10). Conforme escreveu São Tomás, “odiar o mal de alguém e querer o seu bem, é a mesma coisa. O ódio perfeito é, portanto, um aspecto da caridade.” (cf. Summa Theol. II-II, q. 25, a. 6, ad 1). Lutemos e rezemos, pedindo na intenção do salmista que o Senhor se erga para castigar os ímpios como eles merecem (cf. Sl XCIII) depois de tanto bradar aos céus pelo castigo.

E busquemos, como buscaram os mártires e confessores, como demonstraram os santos com suas palavras e vidas, cumprir o dever exigido do cristão: ser fiel à verdade até o último suspiro, combatendo o bom combate para a maior glória de Deus, sempre em busca da Cruz Coroada.

Peçamos a Nosso Senhor que nos livre dos receios da humilhação, do desprezo, da calúnia, da repulsa, do esquecimento, da ridicularização, do escárnio e da difamação, como recitava o Cardeal Merry del Val em sua Ladainha da Humildade, para que, com ardente zelo, não tenhamos medo de enfrentar tudo o que for necessário para maior glória de Deus, pois “é ínsita no Sagrado Coração a qualidade de ser símbolo e imagem expressiva da infinita caridade de Jesus Cristo que nos incita a retribuir-lhe o amor por amor” (cf. LEÃO XIII, Annum Sacrum, 1899).

Que o católico seja “a alma fiel que, venerando o Coração de Jesus, adora juntamente com a Igreja o símbolo e como que a marca da caridade divina, caridade que com o coração do Verbo Encarnado chegou até a amar o gênero humano contaminado de tantos crimes.” (cf. PIO XII, Haurietis Aquas, 1956). Consumamo-nos de zelo pelo Senhor carregando o estandarte da Santa Cruz nas fileiras de seu Exército! Cor Iesu Sacratissimum, miserere nobis! - Sacratíssimo Coração de Jesus, tende piedade de nós!